"Às mulieres não há que dar-lhes confiança. Há que ser simpático. Há que ser educado. Mas não há que dar-lhes confiança, que depois chá querem mandar elas."
Oscar pausou o discurso no centro da sala de dança, rodou o corpo e continuou:
"E no tango quem manda é o homem. Na vida, lá fora chá sabemos que não é assim. No tango ainda é."
Era com estas frases provocadoras que Oscar gostava de começar os cursos de tango. E Oscar dizia sempre estas coisas com um tom meio jocoso, meio sério, até Gladys, a mulher, o interpelar sem falar, mandando que continuasse.
"Dançar o tango é caminar. Não é levantar os pés e fazer eu sei lá o quê, dar coices de um lado para o outro, dobrar os joelhos. O tango é chão. Há ganchos, há patadas, mas isso é diferente. O tango é caminar."
E exemplificou, caminhando com segurança, marcando o passo a pisar possante o chão.
Gladys anuiu com um sorriso e continuou:
"A mulier no tango deve estar segura, caminar, leer o corpo do homem e manter a distância."
Oscar interpelou-a e acrescentou no tom jocoso de sempre:
"Que o homem com a boca engana; com o corpo fala verdade. Mulieres, é ou não é verdade?"
Gladys sorriu e continuou, na aula que parece ela mesma um tango cúmplice, em que há sincronia e desafio ao mesmo tempo:
"Mas o que a mulher lee é o ombro do homem. O homem na verdade pode fazer o que quiser da cintura para baixo que se a mulher não leer o corpo dele não reage. Por isso as indicações normalmente são com o corpo. Não se preocupem com os pés. Sigam o corpo do homem que os pés van atrás."
Argentinos os dois, ela muito loira e esguia, ele moreno de cabelo puxado atrás, com gel. Estão em Portugal há mais de duas décadas, mas o seu português ainda evidencia resquícios do castelhano nativo.
Exemplificam então o passo base do tango antes de irem ensinar os movimentos mais simples separadamente: Oscar aos homens, Gladys às mulheres. Não há misturas, porque cada um sabe as suas coisas e não se querem misturar as instruções específicas. Não querem mulheres a dançar como homens e homens a dançar como mulheres, que no tango os papéis e os movimentos dos diferentes géneros estão bem definidos e bem marcados..
E seguem as aulas que já esquematizaram num sistema deles, complexificando gradualmente o que ensinam nas sessões. Aula um: passo base e talvez os oitos para a frente, aula dois: passo base, oitos para a frente e oitos para trás, e por aí adiante.
E a aula é um intercalar de tango, explicação técnica e prática da técnica - sempre por esta ordem a acabar novamente em tango improvisado.
Gladys e Oscar param no final de cada música e nas práticas para trocar os pares, para não haver vícios de quem está habituado sempre ao mesmo parceiro e já dá ou lê mal as marcações. Que as aulas não são para se dançar bem com o par com que se veio à aula - são para se dançar bem, ponto.
E fazendo um contínuo coerente de quem fez do tango a sua vida, Gladys e Oscar explicam o tango como se explicassem a própria vida.
"Quando se fazem óitos - aquele passo bonito em que a mulier anda de um lado para el outro em frente ao homem - o homem pede óitos, mas não os controla. A velocidade é aquela que a mulher quisser fazer. O homem só tem de dar a indicação e esperar que ela faça o que ele pede. A mulier tem de ser clara na sua mensagem também - e quando faz óitos, quando se passeia frente al homem, a mulher nunca pode estar em desiquilíbrio. A mulier faz o que homem pede, mas zela sempre pela sua segurança, sim mulieres? Ela dança com ele e para ele, mas nunca se descura de si. A mulier anda, pousa a perna e roda sobre o seu eixo; se nada for pedido a seguir, anda de novo e roda completamente sobre o seu eixo antes de andar novamente e repetir, até o homem pedir "pará"."
Gladys exemplifica enquanto fala e acrescenta:
"E quando a mulier anda para trás, mulieres, deve ir suavemente sem bater com o pé, acariciando o chão, apalpando o terreno como se fora sozinha,
sem com isso deixar de seguir o homem: mas a mulier deve estar sempre
segura dos seus movimentos. Está bem, mulieres?"
O par exemplifica toda a filosofia do tango como se ele fizesse parte não só da sua profissão, mas da sua relação, da sua vida, do seu corpo. Oscar a dar as marcações, Gladys a marcar a velocidade. Cada um com o seu espaço, como seu lugar, com o seu poder - num equilíbrio simbiótico, inseparáveis.
Que no tango só admiram os pés dos bailarinos quem vê de fora - porque quem dança, põe os pés sem pensar muito: o que lê é o corpo, o que sente.
E o tango é uma linguagem. Há que saber falá-la.
"O homem, no tango fala quatro palavras chave: "andá", quando caminha em frente e pede à mulher que siga à sua frente; "veni", quando camina para trás e pede à mulher que o siga, caminhando ela em frente; "passá", quando o homem dá passagem à mulher e faz um camino para ela e "pará", quando o homem estanca o corpo impedindo a mulher de passar."
Oscar exemplifica com Gladys à medida que explica e depois diz, subitamente sério:
"Se a mulher não sabe o que fazer, a culpa é sempre do homem que não está a dar boas indicações."
E a seguir alivia o aviso, explicando que:
"O mais difícil no tango para o homem é dançar sem desiquilibrar la mulier. E todos sabemos que uma mulier desiquilibrada é muito perigosa." - sorri malicioso e olha para a mulher, como que a desafiá-la. Ela sorri e diz que é verdade, que uma mulher desiquilibrada é perigosa, mas que é claro que quem deixa as mulheres desiquilibradas são os homens, que é claro que a culpa é deles, ora então. Não fossem tão chatos.
"Mas homens, apesar de às vezes ser difícil, dancem com as mulheres. Aqueles homens que agarram as mulieres e andam com elas como se fossem bandeiras, não sabem dançar. No tango o homem pede, e espera que a mulier faça. Se não faz, não tem problema, o homem segue e pede outras coisas. Mas não agarra a mulier para a por a fazer as coisas ele. Isso não é dançar bem."
"Porque o tango não é uma dança matchista como dicen. A mulier também manda. Que no tango o homem diz "o quê", a mulier dice "quando" e "onde"."
Um catálogo de personagens imaginárias para ficç(aç)ão. um kit de ideias. para pensar, escrever ou sonhar.
segunda-feira, janeiro 21, 2013
segunda-feira, janeiro 14, 2013
Filipa
(personagem escrita para um pedido de casamento a 11/1/2013. O texto tem o input da própria Filipa)
Todos nós somos as personagens principais das nossas vidas. E o mundo é uma série de novelas em que as personagens principais de uma história são personagens secundárias e figurantes nas dos outros.
Todos nós somos as personagens principais das nossas vidas. E o mundo é uma série de novelas em que as personagens principais de uma história são personagens secundárias e figurantes nas dos outros.
Passo a passo
vamos construindo as histórias das nossas vidas ora com opções que tomamos ora
com opções que a vida toma por nós.
As escolhas que nós fazemos, grandes ou pequenas, são os passos que damos (ou achamos que damos) em direcção àquilo que queremos para nós. Por norma são negociáveis. As escolhas que a vida toma são as barreiras ou as pontes que encontramos nesse mesmo caminho. E são geralmente incontornáveis.
Filipa soube da morte do Nelson no início de Dezembro pelo Facebook. Esse foi o dia em que o Facebook lhe mostrou que a vida, para além de nos poder destruir alguns pequenos sonhos, se pode também desmoronar por completo aos nossos pés.
E esse foi o dia em que a Filipa pensou pela primeira vez nas riquezas que possuía.
Um Colega havia morrido. Vou dizer de novo: um colega, jovem, com toda vida planeada mas não construída havia morrido. A ligação não era particularmente forte, mas a ideia incontornável de que poderia ter sido o seu namorado, fê-la tremer.
Nesse momento fechou os olhos e pensou nas suas riquezas: os seus amigos, a sua família, a profissão que adora e ele, o inquestionável homem que por algum motivo ainda inexplicável a completava. E se fosse ele? E se de repente todos os planos, sonhos, viagens e horas de amor lhe fossem tiradas num segundo por um carro, por uma queda, um acidente?
E de repente já não estar. De repente, aquele pedaço da sua vida, tão certo, tão seguro, já não existir. O Nelson já não existia e, mesmo não sendo um dos personagens principais da sua vida, a sua morte tocou-a como se fosse. Porque o Nelson não era só ele. Ele era a própria Filipa. Era a Fabi, a Aida, a Cat, a Mafalda, a Sílvia, a Cátia e as outras amigas próximas. Ele era o namorado, Nelo. Ele era o pai e a mãe. Ele era a avó. Ele era todas as pessoas de quem gostava muito e que a qualquer momento poderiam deixar de existir. E não havia nada que pudesse fazer para mudar isso.
Filipa não tinha medo
da morte, aliás, por ser enfermeira encarava-a com a naturalidade de quem
encara algo que faz parte da sua vida. Mas nesse momento sentiu um pânico
enorme e uma urgência de viver crescer-lhe no peito. Teve muito medo.
Abriu os olhos
e decidiu que não mais adiaria as coisas que pudesse fazer. Não queria deixar nada por dizer, nada por fazer.
Toda a vida, Filipa se protegera de viver. Toda a vida foi cuidadosa na escolha de quem abria o seu coração, e não apenas em termos amorosos. Por vezes o coração não se abria de todo, e só as pessoas que a aceitavam tal como era acabavam mais cedo ou mais tarde por entrar. Quando lá chegavam podiam perceber que não mais de lá sairiam.
Com esta consciência, sentia que agora procuraria abraçar tudo o que tinha de mais precioso: a sua família, os seus amigos, o seu namorado. Tentaria aproveitar todos os abraços, todas as saídas, todos os beijos, todas as conversas.
Respirou fundo e acalmou-se um pouco. Disse mais uma vez a si mesma que a vida são os passos que damos, que são as nossas opções. E as opções que a vida toma são o que não controlamos.
E de repente apercebeu-se: a vida tem coisas que não controlamos e coisas que escolhemos a cada segundo.
E as opções que tomamos em cada momento são nossas. A opção de estar com os amigos e aproveitar a sua presença, a opção de usufruir da casa, de sentir gratidão pelo emprego, por não faltar nada na mesa, por amar e ser amada, por existir.
Era o sentir-se grata por cada momento de alegria e abundância. Fechar os olhos e sentir alegria e gratidão, pelo calor da casa, pelo cheiro a comida e a lenha a queimar. O pelo dos gatos a passar-lhe nas mãos um a um quando se senta no sofá. De olhos fechados grata pelos amigos presentes nas ocasiões banais e especiais. De olhos fechados porque a vida ia levá-la às cegas pelos caminhos que bem entendesse, de qualquer das formas. Fechava os olhos porque deixava de resistir, e deixava-se levar, decidida apenas a aproveitar cada momento do caminho o mais que pudesse e a tomar todas as opções que achasse que a iriam conduzir à felicidade, mesmo sem ter a certeza que isso iria acontecer.
Nessa noite, já tarde mas de olhos ainda abertos na cama, abraçou o namorado com força e sem falar. Ele tinha-a conquistado havia anos e tinha-se tornado uma parte da sua vida. Sentia-o como uma criatura sem igual, que sem razão aparente a tinha conquistado. Pensou em quem eram ambos e lembrou-se que muitas vezes a vida dos outros também tem que ser preenchida por alegria, e que muitas vezes somos nós que a temos trazer alegria às vidas dos outros. Pensou nas tantas concessões que fazia para agradar a colegas, a amigos - mas será que se mostrava um bloquinho de gelo perante aquele homem? A pessoa com quem provavelmente iria passar mais tempo na sua vida? Ela assim o desejava, mas e se assim não fosse esse, o destino? Como se sentiria se o perdesse? Mas mais ainda, se o perdesse sem ter mostrado o quanto o amava? Sentir-se-ia culpada - perdida e culpada.
Sentindo a sua agitação muda, ele abraçou-a um pouco mais.
Não, não poderia deixar nada por dizer, nada por fazer.
Fechou os olhos. À memória veio-lhe aquela música. E como uma música pode dizer tanto sobre ela e ele. A Filipa tinha medo dos passos a dar, de amar alguém quando já tinha sido abandonada. Mas ao ver aquele rapaz, tímido e doce, quando a esperava, quando a olhava, as suas dúvidas de alguma forma se dissipavam.
A melodia começou a tocar na sua cabeça, a letra a passar no seu coração. Abriu os olhos. A decisão estava tomada, e naquele dia de Dezembro, este dia já existia.
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