segunda-feira, fevereiro 20, 2012

Cala-te

“Cala-te. Fecha-me essa matraca. Está calada. Olha as pessoas, não vês que estás a incomodar as pessoas?”

Rodrigo trespassou todas as tentativas de início de comunicação de Mafalda. A cada inspiração de ar para falar, agarrou-lhe a intenção e amachucou-a com determinação e intransigência.

Mafalda calou-se e baixou os olhos, murmurando um pedido de desculpas.

Desculpou-se e não sabia onde se meter, o que fazer às mãos, às pernas, para onde olhar, o que fazer. Como se fosse toda ela desadequada, como se toda ela estivesse fora de sítio, fora de água.

Decidiu ficar imóvel na esperança que não voltassem a reparar nela, mas acabou por ficar no meio do caminho de Rodrigo outra vez, na sua tentativa de ser invisível.

“Sai da frente, Mafalda, sempre a empeçar, sempre no meio do caminho das outras pessoas, sempre a estorvar, mulher. Sai, sai!”

Quis sair e entornou a jarra que estava no móvel. Não partiu nada mas molhou tudo.

“Sinceramente, Mafalda. Não consegues estar quietinha, não? Francamente, que belo trambolho me saíste. Sai daí, sai. Ó Marta, chega-me aqui um pano que a Mafalda entornou a jarra da entrada.”

Engoliu em seco, já sem saber como estar mais embaraçada, só à procura de algum sítio onde se refugiar. Queria sair dali, mas não tinha como. Não podia esquivar-se para que não achassem que se escusava a limpar o que tinha sujado, não queria mexer em mais nada para não fazer mais asneiras.

Pegou no pano que Marta trouxe, dizendo que não fazia mal nenhum, que não se preocupassem.

Rodrigo tirou-lho da mão, bruscamente, como se ela fosse inepta até para secar a água do móvel, do chão, dos bibelots.

“Está quieta, mas é, não achas que já fizeste o suficiente?”

Mafalda baixou novamente os olhos, sentindo-se como se tivesse pouco mais de 10 anos, repreendida e humilhada pelo namorado.

Acabaram de limpar tudo sem ela, que era única pessoa dos quatro que não segurava em nada, que não fazia coisa nenhuma, tornando-se por isso estranhamente visível, por ser a única que não estava em movimento, a única que estava ao alto.

Sorriu um sorriso muito amarelo e foi à casa de banho para se aliviar mentalmente, estar um pouco sozinha, não ter qualquer possibilidade de incomodar ninguém. Quis chorar, mas achou que ia borratar a maquilhagem e ainda dava mais azo a que o namorado se zangasse com ela.

Quando regressou, Rodrigo estava pronto para ir embora.

Disse por ela que Mafalda não queria café, “pois não, Mafa?”

Ela queria. Queria mesmo muito. Mas ficou calada e anuiu.

Despediram-se das pessoas e ele levou-a pelo braço, como quem leva uma criança
pouco competente ou um cão.

Entraram no elevador, deixaram que a porta se fechasse e ele encostou-a à parede de trás do elevador com força, segurando-lhe nos ombros.

Perguntou-lhe duramente se ia ser sempre assim, se não a podia levar a lado nenhum.
Se ela o ia envergonhar sempre, se não se sabia comportar.

Disse-lhe que ela era uma vergonha e encostou o joelho dele no meio das pernas dela.

O elevador abriu, ele soltou-a e entraram no carro onde ele a tratou com renovado desprezo e renovada punição.

Não falou com ela, não olhou para ela e manteve o carro em silêncio sem música o tempo todo.

O caminho opressivo demorou-se. Mafalda sentia que queria fazer xixi e que mal se aguentava sem molhar as cuecas, do nervoso miudinho que aquela situação lhe impunha. Opressiva. Claustrofóbica. Minimizante. Anóxica.

Chegaram e ela saiu sozinha do carro.

Ele não olhou para Mafalda e ela seguiu-o na garagem acelerando o passo para não ficar para trás.

Pediu-lhe desculpa muitas vezes e quis arranjar justificações.

Ele respondeu algum tempo depois, com novo e muito frio “cala-te”.

Abriu a porta do apartamento à frente dela. Ela entrou a medo. Não sabia se devia ficar ou se ele quereria ficar sozinho.

Despiu o casaco e pendurou-o.

Ele perguntou-lhe o que é que ela estava a fazer. Se ele lhe tinha dito que ela podia ficar ali com ele.

Mafalda corou e pregou o olhar no chão.

“Vem aqui.”

Mafalda foi, na atitude submissa e sem jeito dos cães depois de fazerem algo que sabem que é uma asneira.

Rodrigo sentou-a no sofá, pegou-lhe na mão com gentileza e, com suavidade perguntou, afirmando:

“Esta não foi uma boa noite pois não?”

Mafalda abanou a cabeça, concordando.

Rodrigo bateu-lhe na cara e beijou-a.

“Gostas disto, não gostas?”

Mafalda acenou com a cabeça, corando e ficando ainda mais húmida.

Rodrigo apertou-lhe o pescoço com força, sufocando-a, e levou-a para o quarto onde deu azo a todo o amor e toda a requintada violência que tinha para com ela. Deixando-a marcada nos lugares mais insuspeitos e fazendo-a gritar de dor e prazer toda a noite. Que preparara habilmente num longo serão de humilhações preliminares.

domingo, fevereiro 05, 2012

Balbina

Balbina era uma moça vistosa e faladora. Filha de uma das melhores famílias de Ovar, estudava no Porto, numas freirinhas, que a terra não oferecia o ensino de qualidade que a mãe e o pai aspiravam para os filhos.

Apesar dos inúmeros pretendentes em Ovar e no Porto, Balbina namorava à janela para um moço, Jorge Leitão, de uma família não tão abastada e certamente com menos pedigree.

Mas Balbina era louca por Jorge.

Determinada como só as meninas bonitas e de boas famílias conseguem ser, conseguiu convencer a mãe a mudar a secretária onde estudava e fazia os lavores da escola para perto da janela, de modo a que ficasse com visibilidade para a rua mas da rua não a conseguissem ver.

Entretinha-se esperando à tarde por que Jorge passasse pela sua janela para conversarem horas perdidas, fazendo as suas tarefas escolares apenas como pretexto para que o tempo passasse mais depressa.

Ninguém sabia, mas Balbina tinha tamanha obsessão pelo namorado que até lhe conhecia as rotinas de cor e era capaz de o identificar a grande distância, reconhecendo-o mesmo quando ele ainda travessava a ponte.

Toda a gente sabia, no entanto, o quão assolapada era a paixão da garota pelo jovem - e daí que lhe estivesse vedadíssimo sair de casa para namorar. Namoro à janela e com supervisão era a receita dos pais. e nem pio!

Quando Balbina via Jorge passar a ponte, sabia que tinha 15 minutos para ir ao espelho pentear o cabelo e beliscar as bochechas para ficar mais bonita e assim podia assomar à janela como se nada fora - ainda mais bonita e trigueira - apenas quando ele por lá passasse para a namorar.

E assim era a vida de Balbina: levantar-se de manhã para o colégio e voltar muito depressa para casa, para esperar o seu amado; namorar à janela e esperar por um novo dia.

Até que um dia, ao longe, na ponte, Balbina viu o seu amado de mão dada com uma outra. Outra cachopa. Que ela não reconhecia.

E o mundo caiu-lhe em cima dos pés, juntamente com o seu coração que se desfazia nas suas lágrimas.

Mas Balbina era quem era. Uma menina bonita e mimada.

Quando Jorge lhe chegou à janela nesse dia, desceu as escadas e saiu à rua rompendo as proibições todas, para cara a cara tirar as suas satisfações.

E a uns palmos do seu amado, teve a confirmação que temia. Jorge enganava-a com outra.

Balbina virou costas, entrou em casa e jurou que nunca mais ia ser enganada.

Ganhou um ódio de morte ao antigo namorado e arranjou outro namorado na terra. E mais uns quantos no Porto, com os quais chocava a sua pobre mãe que ia sabendo das companhias da filha pelo apertado círculo de cusquices que sempre circundava as meninas de boas famílias.