domingo, junho 05, 2011

Judite

Judite tinha um coração de ouro maciço, inteiro e reluzente.

E como qualquer objecto de metal deste tipo, era também impenetrável.

Tomava as maiores precauções para que não ficasse ferido, não se riscasse, não perdesse o brilho. Guardava-o como se tivesse um cofre, dentro de um forte, no meio de uma ilha.

E o seu coração crescia, em tamanho e peso, cada vez mais.

Até se tornar insustentável carregar com o seu coração grande, bonito, perfeito, doirado, pesado e inútil.

Porque os corações não são meras peças decorativas, são peças utilitárias.

E o coração de Judite quanto mais temia o uso mais se tornava pesado.

Até que um dia, farta de o carregar de um lado para o outro, Judite já só o queria entregar a alguém que a ajudasse com esta carga.

Ernesto tinha ar de quem conseguiria segurar o coração Judite porque era ele próprio grande e forte. Faltava-lhe no entanto a coragem e a sabedoria para compreender o valor do objecto que segurava nas mãos e um dia deixou o coração de Judite caído pelo chão, depois de o riscar, rachando-o a meio na queda.

Desgostosa de ver o seu maior tesouro partido e desprezado, Judite consertou-o na medida do possível e pensou que não o voltava a deixar por mãos alheias.

Mas os corações são um pouco como a loiça boa de jantar. Depois de se partir o primeiro prato, há sempre um pouco menos de cerimónia no uso do serviço. 

E Judite continuou a usar o seu coração que continuou a ser partido, rachado e riscado.

No princípio, parecia mais feio, mas, com o tempo, foi evoluindo; tornou-se filigrana, cota de malha cinzelada, fio de ouro... E com cada uso, o objecto parecia ficar mais leve, flexível, rico e permeável.

E a sua composição foi mudando, desrigidificando. O coração adquiriu o hábito de se mexer e começou a não conseguir passar sem isso, já não sabia estar inerte sem se sentir morto.

Porque o coração de Judite deixou de ser um coração de ouro maciço e passou a ser um coração humano, cheio de sangue mas cheio de vida. Capaz de sentir e de se saber vivo.

Então, Judite deixou de ter medo e começou a viver, agora que tinha um músculo que lhe bombeasse o sangue devidamente pelo corpo todo.

4 comentários:

Anónimo disse...

Com certeza já deves ter visto alguns filmes de Jean Pierre Jeunet. Uma "Judite" tão curiosa, esta.

Fez-me lembrar o meu medo em começar a escrever nos livros da escola que, por serem novos, achava que assim deviam permanecer: sem um qualquer arranhão feito pela dureza da grafite.

Desculpa a minha curiosidade, no meio de tantas personagens que vens criado, fica sempre a curiosidade de quem se esconde por detrás de todas elas. Ainda que seja um pouco difícil (e muito engraçado ao mesmo tempo), proponho que escrevas uma "Helena".
Gostava de te ler um pouco!

Um beijo.

P.S.: Podes sempre dizer que a Helena se encontra distribuída por todas estas personagens. Concordo. Mas gostava, se é que me é permitido, de ler algo mais...concreto. =)

Helena Martins disse...

Olá! Muito obrigada pelo comentário!

A ideia dos livros da escola é muito boa :) os cadernos que depois guardamos com carinho não são os bonitos, perfeitos onde só se podia escrever a azul, vermelho e verde, são os outros, onde os amigos assinaram o nome, onde fizemos desenhos e onde escrevinhamos o nome do/a rapaz ou rapariga de quem gostavamos no meio de muitos coraçõezinhos ridículos :)))

Acho que estou no sempre um pouco no meio destas personagens todas, mas encontras-me declarada e explicitamente aqui:


H ele na
http://personifixar.blogspot.com/2011/01/h-ele-na.html

Cremilde
http://personifixar.blogspot.com/2010/10/cremilde.html

Beijinhos e obrigada de novo :)

Anónimo disse...

Se havia alguma curiosidade em relação a ti, agora há toda uma vontade de perceber por que caminhos se contam as tuas verdadeiras histórias.

Sabes, a minha paixão por conhecer um percurso de vida é tão grande... nestas pequenas introduções que vais criando, fica sempre a vontade de saber mais e mais sobre cada uma das histórias. Mas é aí que a magia permanece.

Por outro lado, sempre tenho uma pessoa cheia de imaginação por descobrir.

Fico a aguardar mais apontamentos "Helénicos". =)

Nelson disse...

A mensagem mostra, à superfície, um coração sofrido. Mas do íntimo de cada uma das palavras sobressai o mistério e a garra na vontade de virar uma página... ou muitas páginas.