Lembrava-se de uma terra na Polónia que não tinha placas nem sinalizações quase nenhumas, de tão perdido que se sentia.
Os habitantes daquela zona tinham eliminado todas as sinalizações para que os estrangeiros nazis não encontrassem as coisas com facilidade e assim vissem um pouco mais dificultada a sua missão de invadir.
Os estrangeiros ainda hoje, mesmo com GPS, chegavam àquela zona do interior do país e sentiam-se desorientados sem uma confirmação in loco de que aquela era mesmo a rua que procuravam, a casa que queriam encontrar.
Naquela altura uniram-se para eliminar tudo: nomes de povoações, setas indicativas, números de portas, nomes de estabelecimentos, etc. Quem era dali sabia onde ficava tudo ou podia perguntar; quem não era, também não interessava que soubesse.
Depois da invasão - que aconteceu na mesma - e da evasão de tanta gente, os que permaneceram ficaram com tantas outras coisas a braços que apenas pontualmente se lembaravam de repor as sinalizações.
E aquela zona da Polónia parecia uma espécie de nenhures, um local suspenso no tempo e sem localização certa onde as pessoas de fora se sentiam permanentemente perdidas.
E João Paulo sentia-se assim.
Toda a vida se identificara como "o irmão da Teresinha". Teresinha, a irmã mais velha, era a menina bonita e inteligente que toda a gente conhecia e admirava.
João Paulo não tinha outra hipótese senão ser "o irmão da Teresinha". Às vezes nem tinha nome, as pessoas referiam-se a ele direta e indiretamente como "o irmão da Teresinha". E ele passou toda a vida a afirmar a sua identidade, a pedir à irmã para parar de o apresentar como "o meu irmão", para o apresentar pelo seu nome, que era um individuo com valor próprio e identidade, não era um apêndice da Teresinha.
A sombra da excecionalidade de Teresinha era tão grande que João Paulo acabou por pedir para ir para outra escola, noutra terra e fez questão de não ir sequer para a mesma Universidade, num acesso adolescente de ciúme incontido.
Com o passar do tempo, deixou de se zangar e começou a achar uma certa graça, como tantos anos depois de nem ele nem Teresinha viverem em Vila Verde, as pessoas continuavam a referir-se a ele - que na cidade em que vivia era uma personalidade importante, sempre tratado com tanta reverência - como "o irmão da Teresinha".
E sorria quando ouvia na mercearia perto de casa dos pais a D. Alda dizer para a filha para trazer a encomenda de pão, que estava lá "o irmão da Teresinha". Mas fazia questão de corrigir a senhora, reprimindo levemente: "sou o João Paulo, D. Alda".
Quando tinha pouco mais de 40 anos, Teresinha morreu.
A dor absurda agarrava o peito de João Paulo como se fosse uma hera galopante, dilacerando-o e dificultando a sua respiração, atraindo insetos, morcegos e fantasmas que queriam assombrar-lhe a alma. João Paulo passeava por Vila Verde à espera da hora do funeral e de repente a sua cidade natal parecia-lhe a cidade polaca onde havia estado havia quase vinte anos.
Sentia-se perdido, como se estivesse suspenso no tempo e no espaço. Fizesse o que fizesse, João Paulo continuava a ser "o irmão
da Teresinha" e esta marca que o irritara tão profundamente, passou com
os anos a fazer parte da sua identidade de forma tão implicita como o
faria anos mais tarde ser referido como o "pai da Beatriz".
E agora, se Teresinha deixara de existir, ele era quem?
Durante o penoso velório, João Paulo, sentado no banco da frente da igreja com a restante família como manda a tradição, não conseguia abandonar este pensamento. Ouvia murmúrios das muitas pessoas que os vinham cumprimentar e aguardar pelo momento do cortejo fúnebre "Carolina, como é que se chama o irmão da Teresinha?" "Acho que é João. Ou Jorge? Olha, sei que começa com J. Ou seria José? Ó Firmino, como é que se chama o irmão da Teresinha?"
E nesse momento, percebeu o que toda a vida lhe tinha escapado.
Ele não era uma pessoa qualquer. Ele não era um habitante da sombra, uma personagem secundária. A sombra de Teresinha nunca havia sido o lugar escuro que ele projetava que fosse, era um lugar quente e cheio de luz, porque as pessoas gostavam imediatamente dele quando sabiam que ele era "o irmão da Teresinha" e invariavelmente esta associação favorecia-o. Mesmo se não o conhecessem, e mesmo se primeiro não tivessem ido com a cara dele, ser "o irmão da Teresinha" toda a vida tinha sido um passaporte maravilhoso que lhe dava acesso à boa vontade e até ao empenho de todos os que tinham essa referência.
Ele era um privilegiado, porque ele não era um qualquer; e todas as outras pessoas poderiam ser muito amigas da irmã e gostar muito dela, ter passado muito tempo com ela.
Mas ele é que era "o irmão da Teresinha".
E nunca mais fez questão que o tratassem pelo nome na terra, incitando as pessoas que se acanhavam de mencionar a falecida, que o chamassem como sempre haviam feito: "o irmão da Teresinha".
Um catálogo de personagens imaginárias para ficç(aç)ão. um kit de ideias. para pensar, escrever ou sonhar.
sábado, dezembro 15, 2012
sexta-feira, dezembro 14, 2012
Nunca = Para sempre - 1
Rui acabou com Maria de uma forma que não se faz e partiu o seu coração em mais bocados do que átomos.
No princípio, as saudades assaltavam-na a toda a hora, em cada sístole cardíaca. Desregulavam o bater do seu coração partido, que insistia em doer, apesar dos argumentos lógicos e muito acertados que o seu cérebro lhe dava para não ter pena: ele não a merecia, não a tratava como devia, era um irresponsável, deitava-a a baixo, fazia sentir-se uma insignificante, não a elogiava, dizia que ela cantava mal e atirava-se a outras mulheres à sua frente.
Todas as razões e mais algumas para agradecer aos céus a benção de a relação não ter durado muito e ter definitivamente acabado. e no entanto as saudades colavam-se à sua pele, a meio do trânsito, do chuveiro, do sono, dos sonhos. do trabalho. dos almoços de família. dos fins de tarde. dos princípios de madrugada sem dormir.
Com o passar do tempo, aos poucos, as saudades foram desistindo de Maria, tornando a sua respiração mais fácil. Foram-na deixando nas horas todas, acordada e a dormir. Foram-se esquecendo de a lembrar dos pequenos gestos de Rui que ela tanto gostava, da maneira como ele procurava os seus pés durante a noite, como a abraçava, da maneira como lhe dava a mão, como conversavam cumplicemente até de manhã, sem verem as horas passar, da forma como eram iguais nos detalhes mais insignificantes e na sua estranha forma de funcionar. como se complementavam e se melhoravam mutuamente.
Depois, as saudades começaram a dar-lhe umas folgas mais regulares, provavelmente por terem também elas outros compromissos, que entretanto assumiam. Ela foi reconstruindo os pedaços do seu coração e começando também a ver como era um falso dourado o das recordações, e com o quebrar do feitiço da paixão, começou a ver os podres da relação e as diferentes nuances da forma pouco digna como ele a tratara.
Desapaixonou-se por completo passado uns meses, mas nunca o esqueceu, porque há coisas boas e más de que é importante lembrarmo-nos.
E se Maria não guardou rancor a Rui, optou por não fazer também tábua rasa de tudo o que tinha acontecido entre ambos.
Um dia, reencontraram-se. Rui, que havia decidido sozinho e de forma bastante cobarde que a relação devia terminar, disse-lhe senhor de si e plenamente convencido de que lhe estava a dar uma boa notícia, que um dia, se a vida mudasse e se voltasse a proporcionar, as portas estavam abertas para reatar a relação com ela. Que a relação tinha sido excelente, que não tinha nada a apontar.
Maria olhou-o nos olhos e pôde dizer com honesta sinceridade que isso nunca iria acontecer.
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