quinta-feira, novembro 22, 2012

Lia

Madeira.

O guia disse "Madeira" e esbugalhou os olhos em pânico.

O tempo primeiro parou e depois abrandou.

Estavam sentados no alpendre a almoçar, uma refeição deliciosa, a ver os alimentos que lhes pareciam estranhos que eram dali e outros que sendo os mesmos que havia em Portugal, tinham um aspecto diferente.

O homem do casal que estava com eles, tinha pedido coentros e estavam a admirar como a folha do coentro é tão maior em S. Tomé. e a rir e a comer e a beber.

Estavam ali, naquele momento bom e banal, quando de repente ouviram um barulho estranho. Primeiro um estrondo e depois, como se fosse um trovão lento, ouviram qualquer som a rasgar o céu.

Lia perguntou ao guia que empalidecera com o primeiro estrondo "o que é isto?"

O guia disse "Madeira" e desatou a correr do sítio onde estavam.

Primeiro o tempo parou nos olhos do guia a esbugalharem com o primeiro estrondo. Depois abrandou muito.

Como se a medida do tempo fosse o bater do seu coração. e muitas batidas equivalessem a muito tempo, porque o cérebro nem sempre acompanha o resto e permanece no tempo mais devagar, embora o resto do corpo se mexa depressa.

Lia viu o guia falar e fugir e pensou: se ele está a fugir e ele é o guia, ele deve saber o que está a fazer.

Naquela fração de segundo, Lia não percebeu se gritou, se falou, se se magoou a sair da cadeira; o pensamento de Lia estava concentrado no momento e no guia e na incompreensão do que estava a acontecer, mas de certeza que era grave para a pessoa que era de lá reagir daquela maneira.

Sem perceber qual era e de onde vinha o perigo, mas ao ver que, tal como o guia, todas as outras pessoas corriam sem saberem muito bem para onde e se abrigavam, Lia percebeu que a sua vida estava em perigo.

E teve muito, muito medo. Pensou que era o fim. Pensou em tudo o que estava a deixar para trás. pensou que estava sozinha naquele seu derradeiro momento, numa terra desconhecida. Pensou nas coisas que amava, na sua casa, nos seus pais, na vida que levava e que agora percebia como era frágil. Tão, tão frágil.

Como era ténue a linha entre a vida e a morte.

Perguntou-se que raio de ideia fora aquela de ir viajar fora da época de férias, que mania de escolher países terceiro-mundistas, porquê, mas porque é que ela se tinha metido naquilo. e agora ia morrer. fim.

Olhou para cima e viu o ramo gigante de uma árvore que apodrecera a cair em câmara lenta em cima do alpendre onde estavam. A árvore devia estar a cair muito depressa, mas Lia ainda teve tempo de olhar à volta e pensar que não tinha como sair dali, que tinha sido um mau sítio para onde se socorrer porque não havia nenhuma porta. Conseguiu espreitar pela janela e medir a distância para o chão, para o caso de ter de saltar. A queda ia ser grande.

Olhou à volta e viu o casal que estava com eles a fugir - muito acertadamente - em direção à porta e desejou ter tido ela também aquela ideia, mas o seu instinto de sobrevivência não lhe permitiu esperar para ver de onde vinha e qual era o perigo.

Cobriu a cabeça e contraiu-se toda à medida que se preparava para o impacto da árvore que atingia o sítio onde estavam. Tinha os olhos fechados, mas sentiu tudo quanto estava à sua volta  movimentar-se e sair do sítio. panelas e tachos e pratos e talheres e coisas que não percebia o que era a estremecerem e a voarem e a mudarem de sítio com força.

O estrondo da queda e o ruído dos ramos e das coisas.

E depois um momento único de silêncio absoluto.

Abriu os olhos e tirou as mãos da cabeça e o tempo voltou ao seu ritmo normal.

e o barulho retornou, pessoas a confirmarem se estava tudo bem com elas e com os seus entes queridos. Ela estava bem. Olhou em frente e viu o homem que estava com eles debaixo da árvore. Quase ao mesmo tempo, um grito da mulher a dizer "é o meu marido, é o meu marido", num grito primal de dor, apelando não aos indivíduos mas à espécie humana que ali se encontrava. Uma dor que os unia, porque poderiam ter sido todos e qualquer um deles debaixo daquela árvore. Porque era um deles que estava ali, talvez vivo, talvez morto. Parte deles.

Correram em seu auxílio e de repente, o tempo acelerou muito. e tudo o que se passou a seguir, passou muito depressa. centro de saúde, hospital, dor, embaixada, transladação. dor. raiva. negação. incredulidade. luto. dor. perda.

Como se os três dias que se seguiram pudessem ser mais pequenos que os poucos segundos em que a árvore caiu, ameaçou a sua vida e depois a mudou para todo o sempre.


quarta-feira, novembro 07, 2012

84 milhões de estrelas

A noite estava escura e riscavam os céus várias estrelas cadentes que choviam alegremente. Valentim gostava de ver as chuvas de estrelas sentado no alpendre de casa da avó, na aldeia onde acabava a estrada.

Olhava para as estrelas sem apontar para elas, porque não queria que lhe nascessem cravos nas mãos e os antigos diziam que os cravos nasciam nas mãos a quem apontava para as estrelas.

Gostava de imaginar o que estaria a acontecer àquelas estrelas que choviam. Estariam a viajar? Como se fossem bandos de aves, será que também havia estrelas migratórias? Na escola, Valentim tinha ouvido dizer que no hemisfério sul da terra se vêem constelações diferentes. Será que era porque as estrelas gostavam de trocar de lugar e também elas de viajar para sítios diferentes?

Será que as estrelas também gostavam de ver o mundo de diferentes ângulos? Passar uns tempos a ver a grande muralha da China e observar as vidas das pessoas que habitavam e passavam por aquelas paragens e depois mudar de perspetiva e observar a África subsariana?


Como será que as estrelas concediam desejos às pessoas e porque é que as pessoas pedinchavam sobretudo às estrelas cadentes, era uma coisa que fazia alguma confusão a Valentim.

Sentava-se no alpendre naquelas noites de verão, num banco largo de madeira que tirava da cozinha e depois encostava à parede para se poder encostar enquanto chupava o caule de uma flor amarela de um dos muitos vasos que a avó não tinha paciência para limpar de ervas daninhas.

Valentim era um rapaz algo solitário e de imaginação notoriamente ativa. Gostava mais que nada das estrelas e pedia sempre livros de astronomia e coisas relacionadas com o tema, nas festividades. Estrelas fosforescentes para o teto do quarto, um modelo do sistema solar que estava em destaque na sua secretária, um pequeno telescópio.

Os pais haviam-lhe prometido que se ele se portasse bem e tirasse boas notas o levavam ao planetário do Porto, a ver as estrelas explicadas.


Mas para Valentim, os mistérios das estrelas não se cingiam à sua localização. Porque Valentim, pequeno como era, sabia que ninguém consegue ao certo saber do paradeiro de todas as oitenta e quatro milhões de estrelas que já se conhecem e que constituem menos de 1% de todas as estrelas da nossa galáxia. E menos ainda dos outros 99% de estrelas.

As estrelas são tantas e tão grandes que ninguém, nem a pessoa ais inteligente do mundo, conseguem imaginar quantas são. E muito menos o que é que andam por aí a fazer.

Valentim deixava-se estar no alpendre, a sentir a brisa quente, a sentir o cheiro da terra seca e sedenta, no meio do canto dos grilos que cantavam em coro para as estrelas que dançavam ao som dessa música para todos.

E imaginava sempre destinos diferentes para as estrelas que amava. Imaginava que viajavam, que dançavam, que fugiam de algum demónio, que se tinham portado mal, que se desiquilibravam e caíam, que se atiravam para um lago invisível, que brincavam às escondidas e às caçadinhas.

As estrelas sempre lhe haviam parecido tudo menos aleatórias nos seus desígnios. E ia imaginando todos os motivos para os seus movimentos, criando explicações que divertiam e fascinavam os adultos com a sua originalidade e inocência.



quinta-feira, novembro 01, 2012

Patrícia

Patrícia ficou um ano à espera para entrar em Medicina.

Toda a vida tinha sido a melhor aluna da turma e sempre lhe disseram que com tão boas notas, bem que podia ser médica.

E a ideia foi ganhando asas com a possibilidade cada vez maior, quanto maiores eram as notas que tirava nas disciplinas do secundário. Vinte valores, vinte valores, dezanove valores, vinte valores, vinte valores, dezanove valores, dezoito valores ("esta vou ter de a subir!"), vinte valores.

No ano em que concluiu o secundário, todos os olhos estavam postos em Patrícia, a aluna perfeita. de certeza que ia entrar em Medicina, com aquelas notas. ui. de certeza.

Mas a pressão de todos os anos dedicados a um objectivo que se concentravam num só momento no tempo e no espaço, num par de exames miseráveis que seriam sempre incapazes de medir o quanto ela sabia, o quanto havia estudado, o quanto queria ser médica, o quanto era importante tudo aquilo para ela, mais as expectativas da família, dos pais, do namorado, dos amigos, dos professores, dos colegas, dos vizinhos, do mundo inteiro, bloquearam-na.

Não foi capaz. De repente, no exame nacional de Biologia, não sabia nada. Olhava para a página e não era capaz de escolher nenhuma opção, de dizer nada sobre as coisas que tinha explicado aos colegas que escreviam de forma afincada, desalmada, nas folhas de papel ao seu lado direito, ao seu lado esquerdo, à sua frente, atrás de si, na sala ao lado, na sala do outro lado, noutras escolas, no país inteiro. Aos milhares. E ela ali parada, com o tempo a contar sem parar, cada segundo que passava a ser menos um ponto na probabilidade de se sair bem, cada vez com menos hipóteses de entrar.

Querer desistir e não poder, que vergonha, como vai ser a vida se chumbar? "Não posso chumbar, não posso perder tudo."

Escrever atabalhoadamente coisas que tem quase a certeza que não estão certas, olhar para as perguntas sem perceber nada e escrever à mesma, porque pode surgir um milagre. Lembrar-se que é ateia. Deus não existe e os milagres também não. Mas se calhar ela pode estar errada relativamente a Deus como está quase certa que a opção que está a tomar no exame está errada. Continuar. acabar o tempo. Não concluir a prova.

O coração a bater muito, arrancarem-lhe praticamente a prova das mãos.

Sair da sala a chorar e chorar muito. Muito. Muito. Por todos os anos de dedicação em que não fez o que lhe apetecia, por todas as noitadas com amigos que perdeu, pelas horas de sono que não dormiu, pelas séries na TV que não viu, pelos momentos em que não esteve lá para os amigos, pelas festas de família a que não foi, pela música que não seguiu, pelas férias que não fez.

Para chegar ao momento mais crucial da sua vida e falhar redondamente, para não cumprir o seu destino, ficar à porta e não entrar.

Teve má nota, um mero 12 valores nesse exame. Não entrou em Medicina.

Esse verão foi terrível. Chorou todos os dias. Os pais, desesperados, mas sem meios para a pôr a estudar noutro país pediam-lhe que não chorasse, que a amavam muito, que ela era uma menina muito inteligente, que podia fazer outras coisas na vida.

Patrícia demorou 3 meses a recuperar. Mas quando o fez disse que não ia gastar o dinheiro dos pais em propinas de um curso que não queria.

E passou o ano em casa a estudar para entrar no curso em valia a pena investir a sua vida.

Entrou no ano seguinte, para gáudio geral.

E foi muito boa aluna todo o curso.

E acabou o curso com muito boa média e uma inclinação para a cirurgia geral.

E quando acabou o seu curso, percebeu que teria de enfrentar novamente o seu monstro. Mais uma vez, a vida a punha à prova com um exame, um momento confinado no espaço e no tempo em que toda a sua dedicação era mensurada de forma injusta.

O exame de acesso à especialidade parecia um reviver exato do pesadelo porque passara no secundário. Todos os olhos postos nela. Toda a gente a torcer por ela e a esperar boas notas. O seu sacrifício pessoal a pesar nada na balança do "senhor Harrison" - o nome que em geral os estudantes dão à Biblia gigante de conhecimentos que têm de devorar e decorar tanto quanto possível para acederem às especialidades na área da Medicina em Portugal.

A não valer nada o seu talento individual para a cirurgia, a sua tenacidade, a sua capacidade de estabelecer relações terapeuticas excelentes com os pacientes, de trabalhar em equipa. Tudo concentrado no que sabia de um livro gigante.

A preparação para o exame tinha tanto de exigente cognitivamente, como emocionalmente. Chorou muitas vezes nos ombros de outros que como ela choravam porque tinham enfrentado o mesmo pesadelo e sobrevivido, apenas para o enfrentar de novo.

Desta vez tinha companheiros de luta, amigos que como ela iam para a biblioteca estudar todo o dia para combater este demónio pessoal de arriscar tudo e não chegar, de apostar a vida toda e não conseguir. De sentir de repente que tinham perdido tudo, que se tinham lançado de um avião plenamente equipados e o paraquedas não tinha aberto.

Mas juntos sabiam que haviam de vencer o monstro. Haviam de conseguir romper aquele karma.

E seria a meras 3 semanas da data do exame final, que Patrícia daria aos colegas a lição das suas vidas.

A meio de uma vulgaríssima sessão de estudo, em plena biblioteca, rodeada dos companheiros e amigos com que passava os dias à volta do Harrison, romperia um aneurisma no cérebro de Patrícia. E a estudante ficaria hospitalizada, em risco de vida, num coma induzido e rodeada de todos que a amavam e os que lutavam diariamente com ela contra o que achavam que era o bicho papão das suas vidas. e que agora temiam pela vida dela contra um bicho papão diferente.