terça-feira, junho 03, 2014

A Campanha de Crowdfunding do Século Começou!

(o título é um pouco dramático, mas enfim...)

Neste link:


Podem encontrar e apoiar o crowdfunding para o livro deste bonito estaminé! :)) 

Conto convosco? :))) 


segunda-feira, abril 21, 2014

Sofia

(participação de Sofia Relvas na edição de 2014 do concurso "Dá-me uma foto e eu conto-te uma história")

Sofia era aquilo a que os ingleses chamam uma "wall flower", literalmente traduzido como "flor de parede", que se refere aos papéis de parede das casas - sabemos que o padrão com as flores está lá, mas às tantas já nem lhes ligamos e elas confundem-se com a paisagem. E Sofia era uma pessoa discreta e quase tímida, que não gostava de ser notada.

E no entanto, a jovem não era uma pessoa vulgar. Gostava de passear na sua bicicleta preto-e-ferrugem e de fazer os recados com ela. Tinha um cesto de arame cromado e gasto à frente e uma campaínha alegre e enferrujada do lado direito. E tinha um especial prazer em fazer atos de bondade um bocado ao desbarato, e sem nenhum motivo em particular.

Lembrava-se sempre da avó.

A avó dizia que os aniversários não eram importantes e nunca os havia comemorado. Nem os seus, nem os dos filhos, nem os dos netos.

Aliás, era frequente na sua aldeia remota registarem-se as crianças em dias diferentes daqueles em que efetivamente tinham nascido: era demasiado caro ir ao registo no próprio dia ou no seguinte: esperava-se por se ter alguma coisa a fazer na cidade e aproveitava-se para registar a criança. Como havia multa pela demora, resolvia-se o problema indicando uma data falsa, compatível com os requisitos da lei.

Ou seja, as datas de nascimento muitas vezes nem se sabiam bem ao certo. Então como podiam ser especiais? Eram mais uma data igual a todas as outras 364.

A avó dizia que não ligava a aniversários e acreditou nisso toda a vida, até que Sofia, que se encantava com festas de aniversário e aguardava ansiosa sempre pela sua, começou de pequena a ligar-lhe sempre no dia 20 de abril, quando descobriu que a avó fazia anos nesse dia.

Maria do Carmo passara toda a vida sem perceber que afinal ligava aos aniversários. Achava uma pieguice de gente da cidade, mas todos os dias 20 de abril passou a acordar com a certeza de que naquele dia ia falar com a neta e por extensão com o filho e a nora e esse ritual tornava o seu dia diferente dos outros. Era o seu dia de anos, não só porque fazia anos, mas porque de facto havia qualquer coisa de diferente nos 20 de abril da sua vida.

O telefonema era curto. Mas existia. Era aquele telefonema, mais ou menos à hora de jantar. Sentava-se com a televisão mais baixa que o costume e levantava-se para atender o telefone de disco que posava autoritário, como que para uma revista, numa mesa do corredor da casa.

Ao fim de dois ou três anos do ritual, começou a avó a retribuir a cortesia, e a neta passou a ser a pessoa a quem ligava para dar os parabéns. O único aniversário assinalado pela matriarca era a 23 de setembro.

A neta tímida, que ficava muito feliz com festas de aniversário e ao mesmo tempo muito nervosa com grandes atenções viradas para ela, era a única que tinha honras de nota à mão no calendário da cozinha, vendido anualmente pelos escuteiros que batiam a todas as portas da aldeia por altura das festas. A única a quem a avó aparentemente distante ligava.

A palavra correu a família e passados poucos anos, 20 de abril passou a ser o dia em que todos ligavam à matriarca - e ela (de forma mais ou menos seletiva, porque afinal a idade permite certas inconveniências sociais) retribuía nos aniversários daqueles que lhe apetecia lembrar e com quem lhe apetecia falar.

A avó não era de resto uma pessoa de trato fácil: autoritária e muito resingona, só se mostrava jovial com Sofia, que tinha aprendido com ela que as pessoas crescem, mas nunca deixam de ser crianças.

Quando a visitava na aldeia, levava a bicicleta velha consigo para dar umas voltas pelas redondezas e a avó repreendia-a sempre, que a bicicleta estava velha e era feia e parecia mal. E Sofia com a resposta pronta, não se deixava ficar, dizia-lhe trocista que então se calhar era melhor não ir à padaria da aldeia do lado buscar o pão que ela gostava mais para não parecer mal e as pessoas não ficarem a falar. A avó contestava com a graçola que só lhe pedia para ir à aldeia do lado para ir buscar o pão porque ela estava a ficar com um grande rabo e a neta dizia com um medo fingido que nesse caso ia já a correr fazer a volta de bicicleta antes que a avó decidisse aproveitar as suas coxas para presuntos.

A verdade é que a bicicleta que Sofia idealizara antes de lhe terem oferecido aquela que usava - e que era muito prática - era bem diferente; mas como acontece muitas vezes, deram o presente à parte de si que ela mostrava, e não à parte de si que ela guardava para as ocasiões especiais (o que aliás é um erro frequente na arte de dar prendas! Tendemos a gostar muito mais das coisas que nos oferecem para a pessoa que queremos ser, do que para a pessoa que somos!).

E lá ficou Sofia com uma boa bicicleta, que coincidentemente era também muito discreta. Embora a jovem gostasse dela, esta tinha pouco a ver com a bicicleta dos seus sonhos e não era cuidada com um esmero de maior.

A avó de Sofia morreu num dia 21 de abril, no dia a seguir ao seu aniversário, uma coincidência que apesar de tudo acabou por ser feliz: toda a gente lhe ligou e Maria do Carmo morreu contente, com a certeza de que era estimada por todos.

Sofia acrescentaria às coisas que aprendeu com avó, além do conhecimento de que toda a gente tem um coração que pode ser derretido com o gesto certo, a consciência de que é importante fazê-lo tanto quanto possível.

E que as pessoas existirão enquanto nos lembrarmos delas.

A partir desse ano, Sofia passou a substituir a chamada que fazia à avó todos os anos com um ritual ligeiramente diferente.

20 de abril (ou o sábado seguinte, se não pudesse tirar o dia) passou a ser o dia do ano em que tratava da bicicleta e a punha bonita. Começou por ser um simples arranjar de coisas em homenagem à avó que se metia sempre com ela por causa do seu ar descuidado, mas com o tempo passou a ser também uma homenagem à criança dentro de si, à parte de si que reservava para ocasiões especiais.

Começou por lhe pôr um cesto de verga (lindíssimo, mas um pouco fútil e certamente menos durável que um cesto de metal que seria a escolha "racional"), depois perdeu a cabeça e pintou-a de um vistoso rosa choque e finalmente colocou-lhe não uma, mas duas campaínhas, uma de cada lado, com sons diferentes.

No dia a seguir ao ritual de arranjar a bicicleta, passeava pela aldeia da avó e ia ao cemitério pôr flores.

Uma coisa tão simples e aparentemente banal como o aspeto da sua bicicleta fazia sentir-se mais bem disposta e recetiva ao mundo. Fazia com que sorrisse mais e se sentisse melhor consigo mesma. E as outras pessoas respondiam, reciprocando esta felicidade aparentemente fútil, com mais sorrisos, mais "bons dias" e mais simpatia. E referiam-se a ela com mais facilidade, por ser "aquela menina da bicicleta cor de rosa".

Porque se é certo que as pessoas existirão enquanto nos lembrarmos delas, a verdade é que só nos podemos lembrar daquilo que as pessoas nos mostram e daquilo que as pessoas nos dão.

sábado, fevereiro 08, 2014

João

Sem ti os dias são todos iguais, João. Percorro os mesmos caminhos todos os dias, o Metro da Trindade às 7h45 aos encontrões com gente ensonada e eu caminho, João, entre as mulheres aflitas com os sacos térmicos com a marmita lá dentro e os guarda-chuvas que cabem nas malas prontos para a chuva deste inverno que nunca mais acaba. Apanho o autocarro e atravesso a ponte, João, com os estudantes que dizem mal dos professores e da escola, sem saberem a sorte que têm, João.

Olho para a rua pelo caminho e gosto de ver o rio. O rio muda; os dias não.

Abro a porta da loja às 8h30 e pouso as coisas no balcão. a colega do turno da noite nunca aspira a montra e eu nunca me queixo. Não tenho mais força para discutir com ninguém João, tu gastaste-a toda.

Aspiro a montra e compro o café na D. Ermelinda. Sopro a chávena e não olho para ninguém. E depois bebo-o depressa como se fosse um remédio amargo, João.

às vezes penso em ti, de como me dizias de mansinho "Entre ti e mim, só há pele e espaço". E depois encurtavas o espaço e entravas na minha pele.

às vezes penso em ti, não. todas as vezes. todos os dias.

Lembro-me do cheiro do teu pescoço, da tua camisa, do teu cachecol. Lembro-me das tuas mãos e dos teus braços e de me encostar a ti nas noites frias em que me vinhas buscar para irmos a pé para casa, pela beira do rio, que "é diferente todos os dias, olha que lindo que é o Porto".

Saio do café fico na loja até ser hora de sair. Estão satisfeitos comigo na loja, João. Eu não.

Nunca mais fiz a ribeira a pé. Demora muito tempo e tu não estás em todo o lado.

Depois vou para casa, como a sopa e durmo, João. Tu não sabes, mas eu durmo contigo.

Trocamos a pele pelo tempo. Entre ti e mim só há espaço e tempo.

E não há pele porque tu fazes parte de mim, porque todos os dias carrego os restos de ti.

A Sofia que é simpática, diz que nas minhas palavras já só há perda. Coitada, está farta que eu lhe fale de ti ao telefone, João. Tornei-me chata, não tenho interesses, não saio de casa, não olho para ninguém.

O espaço que ocupam os restos de ti consomem a melhor parte minha vida. Sinto que tu ficaste com o melhor de mim e me deixaste as tuas sobras. E acho que é por isso que me agarro a ti. Porque se eu não ficar com nada em troca do que te dei, o que é que vai ser de mim, João? Como é que vou preencher o vazio do que me levaste?

Tornei-me numa daquelas pessoas que têm vida mas não a usam, como quem tem um carro sempre na garagem e nunca vai passear com ele. Acho que tenho medo de conduzir, e prefiro só apanhar o Metro.

Antigamente, João, o tempo era a ponte que encurtava o espaço entre as nossas peles, mas hoje o tempo é só o tempo que vai noutra direção e eu fiquei parada na estação onde te encontrei. à tua espera.


terça-feira, novembro 19, 2013

Vitória

Era como se tivesse dois corações.

O de aqui e agora e o das coisas que já não eram.

Era isso, Vitória tinha dois corações.

E os corações eram como se fossem salas que precisam de ser habitadas, ou plantas que precisam de ser regadas, ou animais de estimação que precisam de alimento e atenção.

E quanto mais atenção dava a um coração, menos atenção podia prestar ao outro.

No dia em que  soube da morte da prima, ainda não tinha recuperado a perda do filho, mas tinha sido logo a manhã em que vira alguma esperança surgir no horizonte, em que achara que estava na altura de se levantar, de se erguer, de continuar com a vida, que já chegava de depressão.

A notícia da morte da prima idosa, porém, atirou-a de volta para o ponto de partida e fez com que as saudades do seu pequeno David aumentassem novamente, com que novamente ressacasse como uma viciada o seu cheirinho, o aconchego do seu abraço. E tudo o que precisava, negociava com os deuses, como se fosse perfeitamente razoável, tudo o que queria naquele dia era apenas um abraço para a ajudar a passar o dia, era só isso, só um abraço pequenino, não era pedir assim tanto.

A morte da prima, o passar da prima do coração-do-agora para o coração-do-que-já-não-é aumentava este último, e como a maior parte do coração-do-que-já-não-é de Vitória era ocupada por David, esta perda deixava-a triste por si só, mas sobretudo lembrava-a da falta que lhe fazia o seu menino.

Como se ao aumentar o coração-do-que-já-não-é, aumentasse o quanto vivia a saudade de tudo que já não exstia, de tudo quanto já não tinha. De todos os momentos perdidos, de todos os locais que nunca mais visitara, de todas as experiências que nunca podeira repetir, de todos os momentos que não foram vividos na sua plenitude. De tudo que em tempos fora e que agora, bem, agora já não era. e que engrandecia esse coração.

E como nem nos corações temos o dom da ubiquidade, nestas estadias de longa duração no seu coração de estimação, Vitória ia descurando o coração vital  do agora, desleixando-o e deixando-o cada vez mais vazio, abandonado, com ervas daninhas.

E nem se dava conta, porque no seu coração-do-que-já-não-é as paredes não tinham uma racha sequer,  tudo estava perfeitamente tratado e era um sítio tão melhor de se estar.

Mas se a vida se vive no sítio onde se tem o coração, Vitória tinha vindo a deixar de estar no aqui e agora para estar numa terra de nenhures, que já não é, e ia falando com os seus mortos, os seus amigos distantes, aqueles que a habitavam de forma tão clara, mas que às pessoas aqui e agora eram invisíveis.

E isto era um verdadeiro problema para as muitas pessoas que aqui e agora a amavam e a sentiam cada vez mais distante, por muito que a tentassem agarrar.


segunda-feira, novembro 11, 2013

Cecília

Eram livros velhos o que lhe restava. Eram o que ninguém tinha querido.

Tinham levado o relógio bonito do avô que ela tinha cuidado e tentado que arranjassem, que era a única que lhe dava corda. Tinham levado as colchas de linho, as rendas da avó, os bordados da mãe, as malhas da madrinha.

Tinham levado o ouro da família - esse fora o primeiro a ir. Tinham levado a mobília, aos poucos, peça por peça, escolhendo as coisas boas, deixando-lhe os monos.

Tinham levado o serviço de cozinha, as tigelas de marmelada (parece que as tigelas que há mais de 30 anos tratavam com tão pouca atenção eram "louça de Sacavém, muito valiosa").

Tinham levado o faqueiro - os faqueiros: o bom, que estava numa mala, mas também, o que estava a uso na cozinha. Os copos de cristal - mas ela sempre contara com isso e não eram estas coisas que a incomodavam que não fizessem parte da sua vista, que não lhe estivesse mais à mão.

Mas deixaram os livros velhos. Os bons, de capa dura com ilustrações a cores, levaram - ela não sabia bem porquê, porque sabia que eles iam permanecer fechados e empoeirados numa qualquer prateleira esquecida.

O que lhe deixaram foi os livros amarelos de papel fraco e mal cortado, aqueles que não ficavam bem nas estantes, que estavam manchados na capa e nas folhas com humidade, que tinham sido rasgados ou riscados por alguém, talvez por uma criança mal mandada.

Deixaram-lhe os podres e estragados - os livros e os monos. Tudo o que não queriam. Os sofás velhos e os móveis carunchosos. e foram-se embora para as suas casas boas com promessas de que haviam de ligar e aparecer muitas vezes. às vezes. de vez em quando. bem, que não a haviam de esquecer. e que qualquer coisa, também, era só ligar, já sabia.

e ela ficou-se no seu canto sem voz, com o que lhe restava e que agora era seu: os monos e os livros amarelos e velhos. e as revistas passadas.


Primeiro entristecida e depois sem mais para onde se virar, decidiu-se a arranjar os livros velhos. Antologias literárias de currículos escolares do tempo do estado novo, com anotações infantis da mãe e das tias; fasciculos de cozinha de onde saiam os desenhos que as crianças dedicavam às matriarcas com carinho e amor; atlas desatualizados onde se tinham deixado esquecidas fotografias de família; um molho de cartas de amor por entre romances de cordel com manchas de humidade; receitas culinárias escritas em folhas em branco de livros avulsos e até uma ou outra revista marota do século passado...

E aos poucos, a filha "que ficou para tia", a que cuidou de toda a geração e que havia de não ter direito a quase herança nenhuma, foi percebendo que afinal, afinal, a sorte até tinha estado do seu lado.

Consigo tinham permanecido as coisas que ninguém queria, como toda a vida. Também a ela lhe tinham entregue os pais e tios quando já não "podiam tratar deles" - e ela com todo o amor que tinha em si foi cuidando deles com afã, amando-os com todos os cantinhos do seu coração.

E o que lhe deixavam, a coberto do pó e do amarelo dos livros era nada mais, nada menos que o maior dos tesouros, eram os melhores bocadinhos da alma dos seus velhinhos queridos, as suas preferências culinárias, os seus comentários, as listas de compras, as suas preocupações, o seu dia a dia, como se os pudesse ter consigo mais um pouco nos bocadinhos que descobria por entre a tralha.

Os segredos de cozinha da avó, acabaria por descobrir aí. Bem como, aos poucos, mais uma série de segredos de família. e eventualmente, por entre um caderno de recortes, até uma coleção muito antiga e valiosa de selos que o tio Arnaldo, um famosíssimo colecionador, já senil deve ter confundido e tirou do sítio onde guardava essas preciosidades.

E que, depois de muito se debater, concluiu que era sua, sem qualquer dúvida, estava no lote de coisas que os filhos do tio Arnaldo teriam deitado ao lixo não fosse ela estar ali para lhes poupar até mesmo essa viagem. E seriam esses selos que lhe haviam de valer o suficiente para se livrar dos monos e da casa com humidade, para se mudar para um sítio com sol e viver a vida que teriam querido os pais e os tios, longe da família que a usava e cuidando finalmente de si, numa casa junto ao mar, com uma estante grande de livros velhos e estragados, onde revisitava os "seus velhinhos".


domingo, novembro 03, 2013

César e o Sr. Sá

Ela falou dele e tratou-o pelo segundo nome.

O mundo de César parou nesse momento.

Foram meros instantes no tempo mundano, mas na sua cabeça, foi o processo lento de uma faísca se formar de uma chispa na pedra que se roçava havia algum tempo, tocar em algo inflamável e se espalhar pela floresta de pensamentos na ordem certa.E estes pensamentos já se alinhavam em desconfiança abafada, havia algum tempo.

Ela tratou-o pelo segundo nome com a naturalidade de quem o faz com frequência; disse Filipe em vez de Herculano e continuou a falar normalmente, sem interromper a linha de raciocínio.

E César, que se preparava para entrar no carro ficou parado no seu incêndio mental, na inflexão momentânea que estas coisas demoram aos olhos dos outros.

César sempre fora um homem de detalhes. Acreditava piamente no credo que diz que Deus (ou o Diabo!) está nos detalhes e era meticuloso no que fazia. Aliás gabava-se de preferir ter pouco e fazer pouco e fazê-lo bem, do que o contrário.

Não gostava de tralha.

Fazia-o não porque fosse uma pessoa vazia, mas porque pelo contrário, tinha tantas ideias, tanto que passava na sua cabeça, que este minimalismo o ajudava a lidar com a muita informação que ia armazenando – nem sempre por vontade sua.

César era uma daquelas pessoas que vive no momento e é incapaz de esquecer uma conversa, uma história, um detalhe. Não era uma habilidade treinada, era algo que lhe acontecia naturalmente.

Não era raro surpreender as pessoas que encontrava na rua, a meio da conversa de circunstância perguntando como estava a mãe, que tinha sido “operada, não era? Como correu? Ela sempre se deu lá com o médico?”. As pessoas, que estão pouco habituadas a ser lembradas nos pequenos detalhes – que no fundo revelam as grandes coisas - por quem não lhes é íntimo, desenvolviam por ele um carinho fácil e a crença de que era “muito inteligente”.

O que se passava na sua cabeça não tinha grande mistério. Estava a pensar noutra coisa e depois aparecia a Tânia. A cabeça dele fazia: – “Eu conheço esta pessoa… Quem é esta pessoa? ah! Lembro-me dela, conheci-a na rua Miguel Bombarda, ela estava com o Herculano e estivemos um pedaço a falar de operações porque a mãe dela ia ser operada e estava com medo porque não gostava do cirurgião. Não me lembro do nome dela.”

O passo seguinte, naturalmente, era perguntar pela mãe da rapariga a meio da conversa. A rapariga que vinha distraída pela rua provavelmente estava nesse momento a olhar para ele e fazer um enorme esforço para tentar lembrar-se do nome dele. Era o tipo que conhecera quando estava com o Filipe e estiveram montes de tempo à conversa, “como é que era o nome dele, como é que era? Ai.. não me lembro!... Não me lembro… Não me lembro…”

Conclusão, Tânia ficava com a sensação de que realmente não tinha sido muito fixe, como é que podia não se lembrar de nada daquele moço tão simpático, que ainda por cima lhe perguntava pela mãe – como é que ele se lembrava daquela conversa? Que coisa incrível!" – e o facto de ele ter pedido desculpa que não se lembrava do nome dela, passava completamente ao lado.

Um processo simples. E que ia ainda mais construindo a “biblioteca de factos do quotidiano das pessoas à minha volta, próximas ou não”, bem como “a pilha de conhecimento dos factos mais inúteis do mundo” (que era como César chamava carinhosamente aos infofacts que lá ia coleccionando da mesma forma) e que lhe rendiam a tal fama de inteligente. 

“Acho uma estupidez os meses não serem só o número, nunca me lembro do número que corresponde a cada mês, pá. E que lógica tem chamares a um mês setembro, se depois lhe dás um número que não é o sete?” queixou-se ela, certa vez. César respondia distraído a estas coisas, sem parar de lavar a loiça “originalmente o ano tinha dez meses, mas depois Júlio César quis ter o seu próprio mês e criou Julio - julho, o imperador Augusto que se seguiu quis fazer o mesmo e criou agosto, e é por isso que setembro não é o mês sete, mas nove, outubro não é oito, novembro não é nove… e dezembro não é dez.”

Ou seja, no fundo, César sabia que não era tão inteligente ou atencioso como os outros pensavam, tinha era a sua mente era habitada por um bibliotecário particularmente meticuloso, a que ele se referia carinhosamente por Sr. Sá (por ser a primeira parte da palavra Sábio, a quem faltava a segunda, “bio”, a vida, porque a ninguém adianta ter um "Sr. Sá" se não viver verdadeiramente… Permanece tudo como facto, conhecimento nunca passa a sabedoria!).

No momento em que Joana Amélia tratou o amigo comum por Filipe e não por Herculano, o Sr. Sá puxou o arquivo e mostrou-lhe o dia de aniversário e a conversa que tinham tido no carro sobre a forma como Joana tinha ficado a falar com Herculano. Lembrou-lhe que ele não estava inquisitivo nem ciumento e ela reagiu de forma intempestiva e defensiva, que disse a palavra (sublinhada pelo Sr. Sá) Herculano de uma forma muito pronunciada, ainda a mastigar cada sílaba, como se estivesse a adaptar o aparelho fonador a uma palavra estrangeira. Lembrou-se na altura de pensar que o facto de ela estar um pouco bêbada se calhar também não a ajudava.

Depois, o Sr. Sá, pegou noutro arquivo que tinha já em cima da mesa, como se já o tivesse tentado mostrar várias vezes, da conversa do dia em que César conhecera Tânia e como tinham brincado com o facto de ela tratar Herculano por Filipe – na altura ele tinha feito uma piada com qualquer coisa do género “rápido, disfarça, pode ser que ele não repare que te enganaste no nome”. E de como tinha ficado subentendido que esse tratamento derivava de uma intimidade de cama.

O Sr. Sá depois continuou com os ficheiros que já estavam abertos em cima da mesa grande em mogno e mostrou-lhe a conversa que Joana Amélia tinha puxado cerca de um mês antes da noite de aniversário, sobre um amigo que contara que não-sei-quem do seu passado (os nomes sempre ilegíveis na letra do Sr. Sá) andava a espalhar rumores sobre ela e que ela só queria esclarecer tudo e preparar César se "coisas absurdas sobre a sua pessoa chegassem aos seus ouvidos" ou se alguém fosse falar com ele, porque havia uma história qualquer com um ex esquisita. César não tinha ligado muito à conversa, porque percebera que Joana estava a preocupar-se demasiado com a influencia que outras pessoas poderiam ter sobre a opinião dele e ele era uma pessoa leal, isso não lhe interessava nada. Mas esta incapacidade, este handicap, esta deficiência enfurecedora de não conseguir esquecer detalhes, reavivava-lhe todos pormenores que tornavam cada vez mais implausível que Joana não se estivesse a referir a Herculano naquele rosário desfiado - e que talvez ela não fosse assim tão inocente e aquela fosse apenas uma manobra.

E esta era sempre a parte de juntar as peças de um puzzle de factos do Sr. Sá em que César dizia a si mesmo que, realmente, lá muito esperto não era, porque aquela realidade incontornável e óbvia tinha demorado meses a fazer faísca.

E o Sr. Sá, a verdade é que realmente fazia jus ao seu nome, dava-lhe os factos, mas nunca lhe dizia o que fazer depois. 

César parou-se antes de entrar para o carro. Ainda com os ficheiros do Sr. Sá abertos e sem conseguir acreditar no que o puzzle parecia querer dizer. Como de costume pensou “Se calhar, estou a ver mal. Isto não pode estar certo.”

Arranjou uma desculpa para não ir com ela no carro, que a ele lhe pareceu plausível e despediu-se como de costume. Pôs o corpo em piloto automático: “para casa a pé”, enquanto se sentava à mesa calmamente com o Sr. Sá a ir buscar-lhe todos os ficheiros que ele pedia e mais alguns que ele já tinha de reserva para aquela situação.

Chegou a casa e foi consultar o Sr. Sá da internet: o Facebook. Joana Amélia era amiga de Herculano Filipe – tudo certo, eles conheciam-se de vista havia imenso tempo e tinham-se tornado amigos no seu aniversário. O Sr. Sá pigarreou. César foi ver a semana da conversa manhosa. Um discreto comentário jocoso de Herculano numa fotografia dela, mencionando um vinho - “Papa-figos” - pelo qual Joana andara obcecada naquela altura e que depois lhe passou.

O Sr. Sá olhou por cima dos óculos para César, como quem pergunta se já pode arrumar a meia biblioteca que este lhe desarrumou à procura da prova de inocência de Joana, encontrando a cada passo mais uma prova da implausibilidade da mesma.

Com os olhos molhados, cabisbaixo, César acedeu, agradecendo o trabalho e paciência do funcionário.

E sentou-se na soleira da porta de casa sem saber bem o que fazer nessa situação, em que não tinha encontrado Joana em flagrante e não tinha nada em concreto para sustentar o que sabia, tantos meses depois.

E o entanto, o que sabia era completamente incontornável: Joana mentia e o Sr. Sá iria sempre apanhá-la, mas nunca "com a boca na botija".

E este facto incontornável, de que havia algo que Joana lhe escondia, lhe mentia, apesar de tudo o que já sabia sobre si e sobre o bibliotecário implacável que o habitava, denotava não só uma enorme falta de respeito pela relação que tinham, mas uma falta de consideração total pela sua pessoa e pelos desgostos a longo prazo que lhe haveria sempre de proporcionar com as suas mentiras (piedosas ou não).

E foi nesse mesmo momento que César percebeu que, se não tinha como confrontar Joana, ia mesmo ter de sair daquela relação, da qual jamais se poderia esquecer.

quinta-feira, setembro 26, 2013

Francisca

(Para a Francisca e o miúdo)


“Fránscisca! Ánda verr como eu me porrto bém!” – o miúdo agarrava na mão dela como se lhe pertencesse a ele e levava-a sem cerimónias e sem lhe perguntar se se importava para a sala dos mielogramas, com a sua alegria e o seu sotaque angolano.

Deitava-se de lado enquanto lhe faziam a punção lombar, fugia-lhe uma lágrima (bandida! E ele que queria ser tão corajoso que nem uma gota lhe saísse!) e ele apertava a sua mão.

“Viste, viste como eu me portei bem?” – sem se incomodar com o facto de o procedimento médico ser chocante para qualquer pessoa fora da área da saúde. Provavelmente, sem sequer pensar nisso.

O miúdo adotou-a, pegou na alma dela e colou-a na dele com um adesivo mais forte que super cola 3 e com a sua inocência de criança juntou as suas vidas e os seus destinos de uma forma mais profunda do que ela alguma vez imaginou.

Era ela que o visitava, mas era ele que lhe soprava uma brisa suave de cada vez que sorria, e lhe engrandecia o coração com a sua gargalhada aberta.

E se era ela que lhe segurava na mão, era ele que a apertava.

O miúdo era isso mesmo, um miúdo. Puro, inocente, vivo. Esperto e engraçado. E bonito, com a sua pele cor de chocolate quente e o seu cabelo de carapinha, olhos negros e voz rasgada.

Daquela maneira pura e desabrida, amava as pessoas que se cruzavam no seu caminho, mas especialmente a sua Francisca. A Francisca, por seu turno, como dizê-lo de outra forma? Era dele.

A sua relação inesperada, simbiótica e tão bonita, de miúdo que, com a mãe a milhares de quilómetros, quase sozinho e muito doente, sabiamente escolhe alguém com o coração do tamanho de uma casa para o acompanhar na esperança (e depois na ausência dela) só pôde acontecer porque claramente ambos se reconheceram como iguais.

Dois corações grandes como duas casas, dispostos a partilharem alegrias e tristezas e a partirem, quando enfrentassem a inevitável despedida.

O miúdo partiu, com a sua Francisca a acompanhá-lo até ao fim. A sua Francisca ficou.

No coração-casa da Francisca há para sempre um quarto com o nome do miúdo. E eu desconfio, que no coração-casa do miúdo, também há para sempre um lugar muito especial para a sua Francisca.

sábado, maio 11, 2013

Estrela (2)

Chamaram-lhe Estrela sem outro motivo que a sua raça ser Serra da Estrela.

Estrela era um cachorrinho bonito e ainda muito pequeno quando foi roubada a uma mãe com a resignação triste de quem já pariu muitas ninhadas para humanos que colecionam "raças puras".

O dono queria-a para cão de guarda da Quinta que tinha na "província". O Dr. Rui, um médico cirurgião ("operador", como lhe chamavam os locais) do Porto era dono da Quinta da Igreja, entre a Quinta dos Sousas e da Quinta do Moínho.

Estrela foi escolhida com gosto pela esposa do Dr. Rui e deixada aos cuidados do caseiro, um homem simples que lhes tratava da casa, da horta e dos pomares e que agora ficava também encarregue de cuidar da Estrela.

Como sucede com frequência às gentes simples de vidas muito ásperas, o sentido de poesia e o lado franciscano do caseiro não era especialmente forte, e a perspetiva de ter na propriedade um animal que não produzia riqueza nem alimento, parecia-lhe uma chinesice, apesar de compreender o conceito de cão de guarda.

Assim, Estrela - que entendia o caseiro tinha de ser um cão feroz para assustar os potenciais intrusos - nunca foi uma cadela acarinhada nem mimada em cachorra. Era mantida numa jaula durante o dia, solta à noite e alimentada com as sobras de todas as sobras (as escolhas dos restos dos humanos, filtradas pelas necessidades de outros animais que dessem leite, ovos, ou carne). E era açorreada com frequência, para lhe manter o rosnar fresco.

Ao fim de um ano, Estrela era o cão mais conhecido da população, chamada o "Cão da Igreja" e conhecida por ser um cão mau, feroz e incerto. Ninguém se atrevia a chegar perto da cadela, mesmo para lhe dar de comer.

A sua fama era tal, que o "Cão da Igreja" era usado para assustar as crianças, induzindo-as a portarem-se bem ou a comerem a sopa.

Aos olhos do caseiro, a cadela cumpria a sua função, e a Quinta da Igreja era a propriedade mais bem guardada de toda a região. Nada mais se podia pedir dela, nem dele.

Mas quase um ano após comprar a cadela, quando o Dr. Rui foi à terra ver a quinta e trazer fruta e carne "caseira", a opinião do patrão foi diferente.

Desolado ao ver a cadela que tinha escolhido com brio, infeliz e escanzelada, transformada num mito urbano e geradora de várias lendas sobre o seu mau feitio e força, o Dr. Rui decidiu que a pobre bicha merecia outros donos.

Pensou arduamente nos seus conhecidos, fazendo contas de cabeça à qualidade humana mas também moleza de coração dos vizinhos. Cogitou durante os dois dias em que esteve na herdade como iria formular o pedido e ganhou coragem antes de ligar para o vizinho da Quinta do Moínho, um homem conhecido pela sua bondade e paciência, casado com a professora primária da terra e pai de uma bebé de um ano.

Joaquim recebeu a chamada do Dr. Rui por quem tinha grande estima com surpresa e reservas. O Dr. Rui teve o cuidado de tratar a cadela pelo seu nome verdadeiro, pedindo-lhe se ele poderia ficar com a sua cadela "Estrela" que estava vacinada e saudável, porém muito carente - mas Joaquim percebeu que o amigo lhe falava mansamente do "Cão da Igreja", a pior e mais ruim fera das redondezas. Lembrou-o que tinha uma filha pequena, que não podia arriscar-se com um cão mau e recusou-se.

Mas Rui tinha tanto de inteligente como de casmurro, e tanto lhe apelou ao sentimento, tanto o convenceu de que a ruindade não era genética e que são os donos que fazem os cães, que ao fim de duas ou três chamadas, Joaquim lá aceitou, para gáudio e gratidão do Dr. Rui.

Estrela foi para a nova casa com o açaime posto, furiosa com uma troca que não compreendia.

E Joaquim, que fazia jus à sua boa fama, recebeu-a com o afeto e autoridade. Arranjou forma de a cadela poder andar à volta da casa, através de um sistema que engendrara em que a cadela ficava presa com uma trela ligada a um arame que dava a volta à cerca, permitindo ao animal ver a rua e andar bastante, sem nunca perigar a vida e o bem estar de habitantes e visitantes da casa.

Invariavelmente, a cadela era reconhecida como o "Cão da Igreja", causando pânico aos transeuntes e visitantes apesar da trela e do tempo decorrido. E apesar destes elementos, e de efetivamente já não ser o "Cão da Igreja" (quando muito, o "Cão do Moínho", porque era o nome da sua nova quinta) o certo é que Estrela continuava a não ser muito de fiar; não fazia mal aos de casa, mas ninguém se arriscava a deixá-la chegar aos restantes.

Um dia, Joaquim que gostava da cadela e a tratava com a esperança de quem cuida de um pássaro com a asa ferida, decidiu levá-la a passear para uma das suas eiras, para a cadela mudar de ares e caminhar um bocadinho. Levava-a pela trela, não fosse o diabo tecê-las - mas o diabo teceu-as e a cadela soltou-se dele com um puxão, desaparecendo da sua vista.

Resignado e convencido que a cadela teria voltado para a Quinta da Igreja, Joaquim procurou a cadela sem sucesso, voltando a casa resignado e com uma enorme sensação de derrota.

Quando chegou, a cadela esperava pelos donos deitada na relva à frente do portão, ofegante e feliz.

Depois desse dia, nunca mais se prendeu a Estrela.

Com o acesso às pessoas facilitado e bem vindo, Estrela pode demonstrar toda a doçura que lhe haviam reprimido nos primeiros tempos de vida. Era um cão manso e dócil de uma dedicação inabalável aos donos - sobretudo ao dono.

Estrela gostava de acompanhar a dona até à escola, indo à sua frente, qual estrela-guia. Para as crianças da escola, Estrela era uma extensão da professora, que sabiam que estava a chegar quando viam a cadela. E Estrela gostava de ficar na sala de aula, ao lado da secretária da professora a ouvir as aulas e a ver as crianças. Os alunos esqueciam-se que ela estava por ali e tropeçavam nela, pisavam-lhe a cauda, iam contra ela. E Estrela, outrora o "Cão da Igreja", limitava-se a levantar a cabeça e a voltar a pousá-la, na atitude pachorrenta dos cães muito habituados a gente boa.

Estrela vivia feliz e mimada pelos donos e os filhos dos donos que a tinham quase como se fosse uma irmã peluda e muito amada. Levavam-na para todo o lado e Estrela seguia-os, como uma alma que viveu um inferno e reconhecia com gratidão quem a tinha salvado.

De uma forma que os seus donos não poderiam perceber, Estrela compreendia que esta era uma segunda oportunidade, reconhecia os seus erros num passado mais profundo, e agradecia com amor incondicional cada bocadinho de carinho e atenção.

E num dia de festa, com direito a foguetes, Estrela já muito velhinha e debilitada morreu como se apagam as estrelas, afogada no tanque que ficava por baixo da mina onde se escondia quando tinha medo de alguma coisa - como trovoadas... ou foguetes.

E nesta repetição de destinos, com sofrimentos sarados, Estrela cumpriu e pagou o seu karma, para poder reencarnar depois, numa vida com um princípio melhor.


quarta-feira, maio 01, 2013

Mateus


( participação de Mateus Carneiro Martins no concurso do mês de março da página de facebook do Personificcionar)

Faz uma chave, mesmo pequena,
entra na casa.
Consente na doçura, tem dó
da matéria dos sonhos e das aves.

Invoca o fogo, a claridade, a música
dos flancos.
Não digas pedra, diz janela.
Não sejas como a sombra.

Diz homem, diz criança, diz estrela.
Repete as sílabas
onde a luz é feliz e se demora.

Eugénio de Andrade in «O sal da língua precedido de trinta poemas»
 
 
"Uma sombra é o resultado de a luz não conseguir chegar onde pretende." - traduziu Mateus da entrada da wikipedia.
"A Wikipedia sabe lá "o que a luz pretende"!" - respondeu ela muito depressa. "Se calhar a luz pretende desenhar no chão o nosso guarda-sol." 

Sorriu.

Sorriram.

De facto. Sabe-se lá o que "a luz quer".

Porque no fundo a sombra não deixa de ser o fruto visível da relação entre a luz  - que não se pode tocar - e um objeto tactil qualquer.

A sombra depende da intensidade da luz. da cor da luz. do ângulo da luz. Mas também depende da forma do objeto. Do material que o compõe (se é translúcido ou não, por exemplo). da posição em que ele se encontra.

Esta relação luz-objeto pode ser desejada e até planeada, como quando escolhemos o sítio onde pomos o guarda-sol - ou pode ser desagradável, como quando se atravessa uma sombra no nosso livro.

As sombras podem ser enganadoras, como quando os galhos de uma árvore parecem garras e podem ser os monstros que assustam as crianças. Podem ser reconfortantes, como a sombra  da aba do chapéu sobre os olhos.
 
A sombra da fotografia de Madrid era intencional, por exemplo, como se estivessem a fazer sombras chinesas, a contar uma história.
 
Um candeeiro de rua, bonito e alto, desenhava-se no chão como se tivesse quatro braços, que se movimentavam de formas diferentes.
 
Como se a mesma fonte de luz tivesse dois pares de braços. Quem sabe para dar abraços melhores, fazer as coisas mais depressa ou dançar mais graciosamente.
 
A figura que a luz desenhava no chão, o contorno de todos os corpos que a luz abraçava, unia-os na mesma massa, juntando os seus dois corpos no mesmo desenho onde podiam identificar pedaços de si, mas que ao mesmo tempo era bem mais alto que ambos os namorados.
 
O resultado da brincadeira que tinham feito era no fundo uma boa metáfora para a relação de ambos: duas metades da mesma alma luminosa, encontradas, dispostas a juntar todas as suas forças no mesmo corpo, na mesma vida.
 
E se uma sombra pode não ser mais que a impressão de um instante, uma coisa que até pode ser enganadora, o facto é que também apenas na presença de muita luz se fazem sombras fortes e bem desenhadas. E se tentamos por muitos meios eliminar muitas das sombras das nossas vidas com claraboias e candeeiros (e que mais é a noite se não o período de sombra que nos impõe o movimento da terra), a verdade é também que na presença de muita luz, a sombra de uma árvore, de uma cortina, de uma aba é fundamental.
 
Na presença de muita luz, uma sombra pode chegar mesmo a ser a diferença entre a vida e a morte, entre ter visão e ficar cegado, mesmo que momentaneamente.
 
E olhando para esta foto em especial, onde uma sombra une duas pessoas que passam a fazer parte de um candeeiro que ilumina a escuridão, Mateus pensava como as "almas gémeas" podem ser a mesma alma que se divide em diferentes corpos. Pensava na entrada da Wikipedia que dizia que a sombra é a ausência de luz. Sorria com o disparate e dizia à sua amada com doçura ao ouvido:
 
"a tua sombra é um lugar luminoso"
 
É, a sombra da fotografia de Madrid era intencional, como se estivessem a fazer sombras chinesas, a contar uma história.

E contavam.


quinta-feira, abril 11, 2013

Alice

( participação de Joana Vilaverde no concurso do mês de março da página de facebook do Personificcionar)

Respondia às mensagens de aniversário como quem come aos bocadinhos um chocolate muito bom e muito caro. Guardava os emails, mensagens de facebook, mensagens e o que mais pudesse, para mais tarde. Que as coisas boas consumidas todas no mesmo dia enjoam e às tantas já nem lhes sentimos o sabor, só as queremos despachar.

E uma boa conversa, uma boa palavra, era algo que Alice se recusava a despachar, por lhe parecer o pior dos desperdícios.

Então, respondia-lhes com calma e doçura, devagar, a conta gotas nos dias maus, em que tinha mais saudades das pessoas que não via com tanta frequência como gostaria. em que precisava de um abraço.

era um ritual lento e prazeiroso, de luas. Podia estar a responder a mensagens o ano inteiro, porque quem dá coisas boas, recebe coisas boas e era fácil obter respostas que começavam conversas, deixando ainda por responder, guardadas como se estivessem fechadas na embalagem, as mensagens restantes.

porque as pessoas esquecer-se-ão de quão depressa se fizeram as coisas, mas lembrar-se-ão de quão bem feitas foram.

Alice acreditava pouco em convenções sociais. A sua mente estava permanentemente "fora da caixa", como se vivesse sempre do lado de lá do espelho, e conseguia transformar qualquer sítio onde estivesse numa festa, num sofá com lareira à frente. num fim de tarde na praia.

E através dos seus olhos os outros viam-se mais bonitos, mais bondosos, melhores na sua condição humana.

Alice era perita neste jogo que podemos chamar de ilusionismo humano, mas que na verdade podia ser simplesmente a descrição de Thoreau daquilo que é a arte: não importa para onde se olha, o que importa é o que se vê.

E na arte da fotografia humana, Alice via o positivo.

e mostrava-o.

Porque a sua maior qualidade não residia na arte definida por Thoreau, mas por Degas: a arte não é o que se vê, a arte é o que se faz os outros verem.

E Alice conseguia quase sempre fazê-los verem-se pelos seus olhos: numa festa, num sofá confortável. num fim de dia na praia. Bonitos, bondosos, inteligentes e justos - como ela os via.

Do outro lado do espelho.

Porque um espelho tem tantos lados quantos os olhos que o vêem.


quarta-feira, abril 03, 2013

Estrela


( participação de Sophie Lucha no concurso do mês de março da página de facebook do Personificcionar)

Estrela era uma mulher bonita e tinha bom gosto. Era alegre e bem disposta. Amada por todos os que a rodeavam, era mãe de duas crianças pequenas e bonitas. Tinha uma casa bonita no meio do campo e um trabalho bom com horários flexíveis. Tinha uma família bonita e carinhosa.

Estrela era conhecida por sorrir sempre, por ter sempre uma boa palavra para quem se cruzava com ela.

E tinha sempre paciência. E parecia ter tudo mais que uma pessoa possa querer na vida.

Um dia encontraram o carro dela com uma carta despedida dentro.

As estrelas - sóis - são corpos celestes, não são da terra. E Estrela, que sentia que tinha de iluminar as vidas dos outros, não permitia que a vissem com menos luz. Escondia o negrume dentro de si. Guardava-o tão bem guardado no centro secreto de si que começou a colapsar de dentro para fora, como se tivesse dentro de si um buraco negro.

Quando percebeu o que lhe acontecera, Estrela achou que se poderia estar a tornar ela mesma num buraco negro e temeu em breve começar  não só a desintegrar-se, mas também a atrair para si toda a matéria circundante que assim se colapsaria também. O seu negrume mentiu-lhe que corria o risco de ser a destruição dos colegas, dos amigos, da família. Dos filhos.

E achou que o negrume que a devorava secretamente poderia em breve começar a devorar os outros, a começar pelos que lhe eram próximos e queridos. e este pensamento era-lhe insuportável.

Não lhe ocorreu que as estrelas não são sem arestas, que brilham apesar do impacto de outros corpos celestes. Esqueceu-se que o seu brilho iluminava e aquecia a vida dos outros, mas que não era o único, que havia outras estrelas na mesma constelação e que o seu negrume era apenas seu, e que os outros à sua volta eram também corpos celestes (cometas, planetas e outros astros). e que também tinham força para a ajudar. que podia ser vulnerável e ter escuridão.

Perante a perspetiva aterradora de poder prejudicar as pessoas que tanto amava com o negrume que não suportava mostrar nem partilhar, e sobre o qual não sentia qualquer controlo, Estrela decidiu apagar o seu fogo nas águas do rio grande que atravessava todos os dias.

Como-se ao se apagar nas águas do rio, pudesse impedir o negrume de se alastrar.

E num dia triste de chuva, despediu-se da vida terrestre atirando-se de uma ponte alta para as águas fundas e conturbadas daquele rio. E o céu ganhou uma estrelinha nova que se vê ao longe, e que ao contrário dos seus receios mais íntimos, inconfessados, nunca estivera destinada a ser um buraco negro mas cujo brilho e calor se sentiriam para sempre.



sexta-feira, março 29, 2013

Julião

Julião era uma pessoa de mal consigo mesma.

Artista plástico, desde cedo demonstrara grande domínio das mais diversas técnicas expressivas e desde sempre ouvira fartos elogios ao seu trabalho, ao seu potencial e como eram esperadas de si coisas grandiosas.

Munido desta confiança que tinha algo de muito excecional para oferecer ao mundo, Julião estudou nas melhores academias de arte dentro e fora do país e investiu todo o tempo e todo o dinheiro ao seu alcance para ser o melhor possível.

E não se saía mal; era um aluno sempre no top três das turmas que frequentava. E assim, o artista confirmava a cada dia que passava que era muito bom e que tinha potencial para fazer coisas muito boas, quiçá para revolucionar o mundo da arte por inteiro.

Mas à medida que aumentava o nível de conhecimentos, aumentava também a expectativa que o jovem tinha sobre si mesmo, o quão exigente era para consigo próprio. E paralelamente, também o quanto se gabava.

Ao mesmo tempo que estes dois fenómenos aumentavam - a expectativa esmagadora de si sobre si mesmo e a forma empolgada e exagerada com que falava do que estava a fazer - crescia também o medo inconfessável de Julião de ser um fracasso, um falhado. De investir a sua vida toda para depois a montanha parir um rato.

Julião sentia que a na sua vida sempre tinha conseguido superar as provas a que se submetia, e estava habituado a ser testado. Mas não sabia o que fazer nem o que esperar do "mundo real" onde as regras nem sempre são explícitas - sobretudo no que toca à arte - e onde nem sempre é a qualidade artística pura e simples a determinar as oportunidades oferecidas.

Num exercício de procrastinação refinada e muito bem camuflada, refugiava-se na necessidade de se refinar para continuar sem apresentar uma exposição só sua. Participava em exposições coletivas ocasionalmente com boas críticas, mas dizia que queria "quando saísse para o mundo", sair logo a deslumbrar, a vencer, a não falhar.

Falhar, para si, não era admissível, simplesmente. Sempre fora o melhor, e a sua carreira profssional não tinha qualquer motivo para ficar atrás disso.

Assim, de cada vez que empolava mais o seu castelo de ar, mais duro se tornava para consigo, mais dificuldade tinha em trazer à luz do dia as muitas ideias que lhe fervilhavam na cabeça. Mais medo tinha de não conseguir, mais intolerante se tornava à crítica, mais impossível era olhar de frente para si mesmo.

E esta dualidade daquilo que não se faz e daquilo que já se devia estar a fazer, dividia-o e punha-o num conflito interno muito grande.

Julião vivia atormentado entre a pequenez que sentia de si nos momentos de introspeção e a megalomania que passava aos outros quando falava do seu percurso, fazendo sempre com que tudo parecesse muito melhor e maior do que era na realidade.

Não vivia em paz consigo mesmo porque tinha medo que as pessoas descobrissem que ele não era tão bom como dizia, que não tinha o sucesso que apregoava, que ele era mais um a lutar por um lugar ao sol, embora se recusasse a aceitar este facto tão vulgar, comum e... normal - todos os adjetivos com que não suportava identificar-se.

No encarnar desta personagem fabulosa e cheia de uma vida que ele não tinha e que se tornava mais e mais evidente à medida que o tempo passava para quem estava atento, Julião ia-se convencendo temporariamente da sua invulnerabilidade e ia sendo progressivamente mais desagradável com as pessoas que conhecia e as que lhe eram apresentadas sempre que estas estivessem frágeis ou demonstrassem insegurança.

Neste contexto, Julião oferecia com prontidão pérolas de sabedoria, receitas escrupulosas do que as pessoas deviam estar a fazer  com as suas vidas e não estavam a cumprir, entre comentários que podiam ser trocistas e que eram sempre de superioridade. Julião acreditava verdadeiramente que sabia muito da vida e que a sua visão do mundo era a mais correta e mais límpida e dizia tudo o que pensava com grande eloquência e convicção. E desta forma, fazia-as sentir-se pequenas e por vezes chegava mesmo a humilhá-las.

Não é que Julião fosse má pessoa, no fundo; simplesmente, as pessoas que têm egos muito grandes e obras muito pequenas precisam de diminuir os outros a fim de conseguirem resolver a sua angústia de poderem ser muito e não serem ninguém.



quarta-feira, março 20, 2013

Felicidade

"Felicidade sou eu." era a piada que Felicidade Graça, professora de Filosofia, gostava de dizer quando debatia o tema nas aulas.

E por egocentrismo ou afinidade de nomes, este era também o seu conceito preferido e a coisa que mais gostava de abordar nas aulas e até nas conversas em geral.

Gostava que a busca da Felicidade fosse o primeiro direito defendido pela Carta Universal dos Direitos do Homem. Gostava que a Felicidade fosse o bem mais precioso que qualquer pessoa pudesse almejar, sem que pudesse jamais ser comprada. E gostava de debater o conceito com as mais variadas pessoas - embora os amigos já a conhecessem de gingeira e por vezes virassem o bico ao prego, dizendo "para mim, a Felicidade és tu!" - e até tinha um amigo que acrescentava a graçola na mesma onda dizendo "e eu nunca hei de ficar sem mãe, porque a minha mãe chama-se Esperança e toda a gente sabe que a esperança é a última a morrer!"

Felicidade levava a felicidade tão a sério que as suas angústias existenciais tinham sempre a ver com se ela estava a dar o seu máximo, se estava a contribuir o suficiente para a felicidade alheia (sim, esquecendo muitas vezes a sua própria) - porque Felicidade acreditava que a felicidade suprema era fazer os outros felizes.

E perguntava-se muitas vezes se estava a dar o melhor de si, o seu máximo. E sabia que não - porque ninguém nunca atinge o máximo das suas potencialidades.

E preocupava-se.

Ao mesmo tempo, sabia-se insignificante, um grão de areia. E pensava: o que acontecerá quando eu morrer? Quem se lembrará de mim? Será que eu contribuí de alguma forma para fazer deste um mundo melhor?

Acalmava a sua angústia existencial dizendo que a vida se vive no presente, no aqui e agora.

No pretérito presente e no gerundio. No momento e no lugar em que se está e que se vai estando.

E que isso representa uma escolha. aliás várias escolhas, porque cada opção representa uma infinidade de outras opções que não se selecionou. É o que se chama em Economia o "custo de oportunidade".

Por exemplo, não adianta esperar que os outros se lembrem de nós quando nós desaparecemos por completo ou até quando simplesmente não aparecemos com regularidade. Não significa que tenham deixado de gostar de nós ou que a sua opinião acerca da nossa pessoa tenha mudado; significa sim, que não estamos à mão de semear e que eventualmente deixaremos de ser lembrados.

E inevitavelmente, com o girar do mundo, vamos deixando de estar e de ter "à mão de semear" pessoas que são importantes para nós, seja porque motivo for. E que à medida que o mundo vai girando, vamos percebendo que a "importância para os outros" é uma coisa apenas circunstancial; acontece em dados momentos da nossa vida que depois passam.

Mas que há pessoas que nos marcam tanto que mesmo tendo deixado de ser importantes para nós no nosso quotidiano presente, mantêm um lugar cativo nos nossos corações, por aquilo que connosco viveram ou viviam. E nós nos dos outros.

Porque o passado pouco importa. É o presente, o presente gerúndio que conta. Não é o que se fez. É o que se faz - e mais importante ainda, o que se vai fazendo.

Porque insignificante não é o mesmo que zero.

E por isso, Felicidade tinha momentos em que se contentava com a sua pequenez e a forma como estava sujeita à completa aleatoriedade da vida.

E então, percebia que felicidade é o cheiro do pão quente, é a sombra da árvore no jardim da biblioteca, é ver a ponte bonita de manhã, é fazer festas aos cães, é ver o sorriso dos sobrinhos e responder às suas perguntas, é dançar. é estar aqui, existir e ser grata.

"Felicidade sou eu."