O mundo de César parou nesse momento.
Foram meros instantes no tempo mundano, mas na sua cabeça, foi o processo lento de uma faísca se formar de uma chispa na pedra que se roçava havia algum tempo, tocar em algo inflamável e se espalhar pela floresta de pensamentos na ordem certa.E estes pensamentos já se alinhavam em desconfiança abafada, havia algum tempo.
Foram meros instantes no tempo mundano, mas na sua cabeça, foi o processo lento de uma faísca se formar de uma chispa na pedra que se roçava havia algum tempo, tocar em algo inflamável e se espalhar pela floresta de pensamentos na ordem certa.E estes pensamentos já se alinhavam em desconfiança abafada, havia algum tempo.
Ela tratou-o pelo segundo nome com a naturalidade de quem o
faz com frequência; disse Filipe em vez de Herculano e continuou a falar
normalmente, sem interromper a linha de raciocínio.
E César, que se preparava para entrar no carro ficou parado
no seu incêndio mental, na inflexão momentânea que estas coisas demoram aos
olhos dos outros.
César sempre fora um homem de detalhes. Acreditava piamente
no credo que diz que Deus (ou o Diabo!) está nos detalhes e era meticuloso no
que fazia. Aliás gabava-se de preferir ter pouco e fazer pouco e fazê-lo bem,
do que o contrário.
Não gostava de tralha.
Não gostava de tralha.
Fazia-o não porque fosse uma pessoa vazia, mas porque pelo
contrário, tinha tantas ideias, tanto que passava na sua cabeça, que este
minimalismo o ajudava a lidar com a muita informação que ia armazenando – nem
sempre por vontade sua.
César era uma daquelas pessoas que vive no momento e é
incapaz de esquecer uma conversa, uma história, um detalhe. Não era uma
habilidade treinada, era algo que lhe acontecia naturalmente.
Não era raro surpreender as pessoas que encontrava na rua, a
meio da conversa de circunstância perguntando como estava a mãe, que tinha sido
“operada, não era? Como correu? Ela sempre se deu lá com o médico?”. As pessoas,
que estão pouco habituadas a ser lembradas nos pequenos detalhes – que no fundo
revelam as grandes coisas - por quem não lhes é íntimo, desenvolviam por ele um
carinho fácil e a crença de que era “muito inteligente”.
O que se passava na sua cabeça não tinha grande mistério. Estava a pensar noutra coisa e depois aparecia a Tânia. A cabeça dele fazia: – “Eu
conheço esta pessoa… Quem é esta pessoa? ah! Lembro-me dela, conheci-a na rua
Miguel Bombarda, ela estava com o Herculano e estivemos um pedaço a falar de
operações porque a mãe dela ia ser operada e estava com medo porque não gostava
do cirurgião. Não me lembro do nome dela.”
O passo seguinte, naturalmente, era perguntar pela mãe da
rapariga a meio da conversa. A rapariga que vinha distraída pela rua
provavelmente estava nesse momento a olhar para ele e fazer um enorme esforço
para tentar lembrar-se do nome dele. Era o tipo que conhecera quando estava com
o Filipe e estiveram montes de tempo à conversa, “como é que era o nome dele,
como é que era? Ai.. não me lembro!... Não me lembro… Não me lembro…”
Conclusão, Tânia ficava com a sensação de que realmente não
tinha sido muito fixe, como é que podia não se lembrar de nada daquele moço tão
simpático, que ainda por cima lhe perguntava pela mãe – como é que ele se
lembrava daquela conversa? Que coisa incrível!" – e o facto de ele ter pedido
desculpa que não se lembrava do nome dela, passava completamente ao lado.
Um processo simples. E que ia ainda mais construindo a
“biblioteca de factos do quotidiano das pessoas à minha volta, próximas ou
não”, bem como “a pilha de conhecimento dos factos mais inúteis do mundo” (que
era como César chamava carinhosamente aos infofacts
que lá ia coleccionando da mesma forma) e que lhe rendiam a tal fama de
inteligente.
“Acho uma estupidez os meses não serem só o número, nunca me
lembro do número que corresponde a cada mês, pá. E que lógica tem chamares a um
mês setembro, se depois lhe dás um número que não é o sete?” queixou-se ela,
certa vez. César respondia distraído a estas coisas, sem parar de lavar a loiça
“originalmente o ano tinha dez meses, mas depois Júlio César quis ter o seu
próprio mês e criou Julio - julho, o imperador Augusto que se seguiu quis fazer
o mesmo e criou agosto, e é por isso que setembro não é o mês sete, mas nove,
outubro não é oito, novembro não é nove… e dezembro não é dez.”
Ou seja, no fundo, César sabia que não era tão inteligente
ou atencioso como os outros pensavam, tinha era a sua mente era habitada por um
bibliotecário particularmente meticuloso, a que ele se referia carinhosamente
por Sr. Sá (por ser a primeira parte da palavra Sábio, a quem faltava a
segunda, “bio”, a vida, porque a ninguém adianta ter um "Sr. Sá" se não viver
verdadeiramente… Permanece tudo como facto, conhecimento nunca passa a
sabedoria!).
No momento em que Joana Amélia tratou o amigo comum por Filipe e não por Herculano, o Sr. Sá puxou o arquivo e mostrou-lhe o dia de aniversário
e a conversa que tinham tido no carro sobre a forma como Joana tinha ficado a
falar com Herculano. Lembrou-lhe que ele não estava inquisitivo nem ciumento e
ela reagiu de forma intempestiva e defensiva, que disse a palavra (sublinhada
pelo Sr. Sá) Herculano de uma forma muito pronunciada, ainda a mastigar cada
sílaba, como se estivesse a adaptar o aparelho fonador a uma palavra
estrangeira. Lembrou-se na altura de pensar que o facto de ela estar um pouco
bêbada se calhar também não a ajudava.
Depois, o Sr. Sá, pegou noutro arquivo que tinha já em cima
da mesa, como se já o tivesse tentado mostrar várias vezes, da conversa do dia
em que César conhecera Tânia e como tinham brincado com o facto de ela tratar
Herculano por Filipe – na altura ele tinha feito uma piada com qualquer coisa
do género “rápido, disfarça, pode ser que ele não repare que te enganaste no
nome”. E de como tinha ficado subentendido que esse tratamento derivava de uma
intimidade de cama.
O Sr. Sá depois continuou com os ficheiros que já estavam
abertos em cima da mesa grande em mogno e mostrou-lhe a conversa que Joana
Amélia tinha puxado cerca de um mês antes da noite de aniversário, sobre um
amigo que contara que não-sei-quem do seu passado (os nomes sempre ilegíveis na letra
do Sr. Sá) andava a espalhar rumores sobre ela e que ela só queria esclarecer tudo e preparar César se "coisas absurdas sobre a sua pessoa chegassem aos seus ouvidos" ou se alguém fosse falar com ele, porque havia uma história qualquer com um ex esquisita. César não tinha ligado muito à conversa, porque percebera que Joana estava a preocupar-se demasiado com a influencia que outras pessoas poderiam ter sobre a opinião dele e ele era uma pessoa leal, isso não lhe interessava nada. Mas esta incapacidade, este handicap, esta
deficiência enfurecedora de não conseguir esquecer detalhes, reavivava-lhe
todos pormenores que tornavam cada vez mais implausível que Joana não se estivesse a
referir a Herculano naquele rosário desfiado - e que talvez ela não fosse assim tão inocente e aquela fosse apenas uma manobra.
E esta era sempre a parte de juntar as peças de um puzzle de
factos do Sr. Sá em que César dizia a si mesmo que, realmente, lá muito esperto
não era, porque aquela realidade incontornável e óbvia tinha demorado meses a fazer
faísca.
E o Sr. Sá, a verdade é que realmente fazia jus ao seu nome,
dava-lhe os factos, mas nunca lhe dizia o que fazer depois.
César parou-se antes de entrar para o carro. Ainda com os
ficheiros do Sr. Sá abertos e sem conseguir acreditar no que o puzzle parecia
querer dizer. Como de costume pensou “Se calhar, estou a ver mal. Isto não pode
estar certo.”
Arranjou uma desculpa para não ir com ela no carro, que a
ele lhe pareceu plausível e despediu-se como de costume. Pôs o corpo em piloto
automático: “para casa a pé”, enquanto se sentava à mesa calmamente com o Sr.
Sá a ir buscar-lhe todos os ficheiros que ele pedia e mais alguns que ele já
tinha de reserva para aquela situação.
Chegou a casa e foi consultar o Sr. Sá da internet: o Facebook.
Joana Amélia era amiga de Herculano Filipe – tudo certo, eles conheciam-se de
vista havia imenso tempo e tinham-se tornado amigos no seu aniversário. O Sr.
Sá pigarreou. César foi ver a semana da conversa manhosa. Um discreto
comentário jocoso de Herculano numa fotografia dela, mencionando um vinho -
“Papa-figos” - pelo qual Joana andara obcecada naquela altura e que depois lhe
passou.
O Sr. Sá olhou por cima dos óculos para César, como quem
pergunta se já pode arrumar a meia biblioteca que este lhe desarrumou à procura
da prova de inocência de Joana, encontrando a cada passo mais uma prova da implausibilidade
da mesma.
Com os olhos molhados, cabisbaixo, César acedeu, agradecendo o trabalho e paciência do funcionário.
E sentou-se na soleira da porta de casa sem saber bem o que fazer nessa situação, em que não tinha encontrado Joana em flagrante e não
tinha nada em concreto para sustentar o que sabia, tantos meses depois.
E o entanto, o que sabia era completamente incontornável:
Joana mentia e o Sr. Sá iria sempre apanhá-la, mas nunca "com a boca na botija".
E este facto incontornável, de que havia algo que Joana lhe escondia, lhe mentia, apesar de tudo o que já sabia sobre si e sobre o bibliotecário implacável que o habitava, denotava não só uma enorme falta de respeito pela relação que tinham, mas uma falta de consideração total pela sua pessoa e pelos desgostos a longo prazo que lhe haveria sempre de proporcionar com as suas mentiras (piedosas ou não).
E foi nesse mesmo momento que César percebeu que, se não tinha como confrontar Joana, ia mesmo ter de sair daquela relação, da qual jamais se poderia esquecer.
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