Eram livros velhos o que lhe restava. Eram o que ninguém tinha querido.
Tinham levado o relógio bonito do avô que ela tinha cuidado e tentado que arranjassem, que era a única que lhe dava corda. Tinham levado as colchas de linho, as rendas da avó, os bordados da mãe, as malhas da madrinha.
Tinham levado o ouro da família - esse fora o primeiro a ir. Tinham levado a mobília, aos poucos, peça por peça, escolhendo as coisas boas, deixando-lhe os monos.
Tinham levado o serviço de cozinha, as tigelas de marmelada (parece que as tigelas que há mais de 30 anos tratavam com tão pouca atenção eram "louça de Sacavém, muito valiosa").
Tinham levado o faqueiro - os faqueiros: o bom, que estava numa mala, mas também, o que estava a uso na cozinha. Os copos de cristal - mas ela sempre contara com isso e não eram estas coisas que a incomodavam que não fizessem parte da sua vista, que não lhe estivesse mais à mão.
Mas deixaram os livros velhos. Os bons, de capa dura com ilustrações a cores, levaram - ela não sabia bem porquê, porque sabia que eles iam permanecer fechados e empoeirados numa qualquer prateleira esquecida.
O que lhe deixaram foi os livros amarelos de papel fraco e mal cortado, aqueles que não ficavam bem nas estantes, que estavam manchados na capa e nas folhas com humidade, que tinham sido rasgados ou riscados por alguém, talvez por uma criança mal mandada.
Deixaram-lhe os podres e estragados - os livros e os monos. Tudo o que não queriam. Os sofás velhos e os móveis carunchosos. e foram-se embora para as suas casas boas com promessas de que haviam de ligar e aparecer muitas vezes. às vezes. de vez em quando. bem, que não a haviam de esquecer. e que qualquer coisa, também, era só ligar, já sabia.
e ela ficou-se no seu canto sem voz, com o que lhe restava e que agora era seu: os monos e os livros amarelos e velhos. e as revistas passadas.
Primeiro entristecida e depois sem mais para onde se virar, decidiu-se a arranjar os livros velhos. Antologias literárias de currículos escolares do tempo do estado novo, com anotações infantis da mãe e das tias; fasciculos de cozinha de onde saiam os desenhos que as crianças dedicavam às matriarcas com carinho e amor; atlas desatualizados onde se tinham deixado esquecidas fotografias de família; um molho de cartas de amor por entre romances de cordel com manchas de humidade; receitas culinárias escritas em folhas em branco de livros avulsos e até uma ou outra revista marota do século passado...
E aos poucos, a filha "que ficou para tia", a que cuidou de toda a geração e que havia de não ter direito a quase herança nenhuma, foi percebendo que afinal, afinal, a sorte até tinha estado do seu lado.
Consigo tinham permanecido as coisas que ninguém queria, como toda a vida. Também a ela lhe tinham entregue os pais e tios quando já não "podiam tratar deles" - e ela com todo o amor que tinha em si foi cuidando deles com afã, amando-os com todos os cantinhos do seu coração.
E o que lhe deixavam, a coberto do pó e do amarelo dos livros era nada mais, nada menos que o maior dos tesouros, eram os melhores bocadinhos da alma dos seus velhinhos queridos, as suas preferências culinárias, os seus comentários, as listas de compras, as suas preocupações, o seu dia a dia, como se os pudesse ter consigo mais um pouco nos bocadinhos que descobria por entre a tralha.
Os segredos de cozinha da avó, acabaria por descobrir aí. Bem como, aos poucos, mais uma série de segredos de família. e eventualmente, por entre um caderno de recortes, até uma coleção muito antiga e valiosa de selos que o tio Arnaldo, um famosíssimo colecionador, já senil deve ter confundido e tirou do sítio onde guardava essas preciosidades.
E que, depois de muito se debater, concluiu que era sua, sem qualquer dúvida, estava no lote de coisas que os filhos do tio Arnaldo teriam deitado ao lixo não fosse ela estar ali para lhes poupar até mesmo essa viagem. E seriam esses selos que lhe haviam de valer o suficiente para se livrar dos monos e da casa com humidade, para se mudar para um sítio com sol e viver a vida que teriam querido os pais e os tios, longe da família que a usava e cuidando finalmente de si, numa casa junto ao mar, com uma estante grande de livros velhos e estragados, onde revisitava os "seus velhinhos".
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