quarta-feira, maio 01, 2013

Mateus


( participação de Mateus Carneiro Martins no concurso do mês de março da página de facebook do Personificcionar)

Faz uma chave, mesmo pequena,
entra na casa.
Consente na doçura, tem dó
da matéria dos sonhos e das aves.

Invoca o fogo, a claridade, a música
dos flancos.
Não digas pedra, diz janela.
Não sejas como a sombra.

Diz homem, diz criança, diz estrela.
Repete as sílabas
onde a luz é feliz e se demora.

Eugénio de Andrade in «O sal da língua precedido de trinta poemas»
 
 
"Uma sombra é o resultado de a luz não conseguir chegar onde pretende." - traduziu Mateus da entrada da wikipedia.
"A Wikipedia sabe lá "o que a luz pretende"!" - respondeu ela muito depressa. "Se calhar a luz pretende desenhar no chão o nosso guarda-sol." 

Sorriu.

Sorriram.

De facto. Sabe-se lá o que "a luz quer".

Porque no fundo a sombra não deixa de ser o fruto visível da relação entre a luz  - que não se pode tocar - e um objeto tactil qualquer.

A sombra depende da intensidade da luz. da cor da luz. do ângulo da luz. Mas também depende da forma do objeto. Do material que o compõe (se é translúcido ou não, por exemplo). da posição em que ele se encontra.

Esta relação luz-objeto pode ser desejada e até planeada, como quando escolhemos o sítio onde pomos o guarda-sol - ou pode ser desagradável, como quando se atravessa uma sombra no nosso livro.

As sombras podem ser enganadoras, como quando os galhos de uma árvore parecem garras e podem ser os monstros que assustam as crianças. Podem ser reconfortantes, como a sombra  da aba do chapéu sobre os olhos.
 
A sombra da fotografia de Madrid era intencional, por exemplo, como se estivessem a fazer sombras chinesas, a contar uma história.
 
Um candeeiro de rua, bonito e alto, desenhava-se no chão como se tivesse quatro braços, que se movimentavam de formas diferentes.
 
Como se a mesma fonte de luz tivesse dois pares de braços. Quem sabe para dar abraços melhores, fazer as coisas mais depressa ou dançar mais graciosamente.
 
A figura que a luz desenhava no chão, o contorno de todos os corpos que a luz abraçava, unia-os na mesma massa, juntando os seus dois corpos no mesmo desenho onde podiam identificar pedaços de si, mas que ao mesmo tempo era bem mais alto que ambos os namorados.
 
O resultado da brincadeira que tinham feito era no fundo uma boa metáfora para a relação de ambos: duas metades da mesma alma luminosa, encontradas, dispostas a juntar todas as suas forças no mesmo corpo, na mesma vida.
 
E se uma sombra pode não ser mais que a impressão de um instante, uma coisa que até pode ser enganadora, o facto é que também apenas na presença de muita luz se fazem sombras fortes e bem desenhadas. E se tentamos por muitos meios eliminar muitas das sombras das nossas vidas com claraboias e candeeiros (e que mais é a noite se não o período de sombra que nos impõe o movimento da terra), a verdade é também que na presença de muita luz, a sombra de uma árvore, de uma cortina, de uma aba é fundamental.
 
Na presença de muita luz, uma sombra pode chegar mesmo a ser a diferença entre a vida e a morte, entre ter visão e ficar cegado, mesmo que momentaneamente.
 
E olhando para esta foto em especial, onde uma sombra une duas pessoas que passam a fazer parte de um candeeiro que ilumina a escuridão, Mateus pensava como as "almas gémeas" podem ser a mesma alma que se divide em diferentes corpos. Pensava na entrada da Wikipedia que dizia que a sombra é a ausência de luz. Sorria com o disparate e dizia à sua amada com doçura ao ouvido:
 
"a tua sombra é um lugar luminoso"
 
É, a sombra da fotografia de Madrid era intencional, como se estivessem a fazer sombras chinesas, a contar uma história.

E contavam.


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