sábado, janeiro 15, 2011

H ele na

A aparelhagem do bar cantava "Lose your keys under the house" na voz de Madeleine Peyroux. O ambiente do bar era a cara dele. A mesma cara porque se tinha apaixonado à primeira vista semanas antes, antes do que viria a seguir.

O ambiente era apenas medianamente iluminado, a estética boémia, as cadeiras desconfortáveis e não combinavam. Ele tinha uma aura de escritor parisiense do princípio do século XX, acossado pelos seus próprios demónios pessoais, de maus hábitos incorrigíveis, cheio de ilusões e ao mesmo tempo, paradoxalmente, descrente da humanidade e do mundo.

"Lose your rhythm, lose your lines, lose your sense of passing time", continuava Madeleine, enquanto ele ia buscar os cigarros.

Ela não tinha perdido a fé na Humanidade. Ela era o seu oposto. Tinha bons hábitos, projectos por sonhos, planos por desejos secretos. Estável e permanentemente feliz. Mas não nestas semanas em que os demónios dele tinham invadido um pouco a sua vida tornando-a um carrossel de sentimentos de euforia e depressão, quase paralisante.

"But if you lose me in your mind I must be saved", tinha apreciado a volta no carrossel e estava grata, embora ligeiramente enjoada.

Sabia-se e sentia-se, finalmente, viva. E um pouco tonta.

"Then lose yourself instead till you remember to forget."

Tinha feito um esforço consciente por não o analisar demasiado enquanto o encantamento durou, mas agora que fora quebrado, via-o tal como ele era. E não conseguia deixar de sorrir.

"Lose your senses, lose your mind, lose your faith in human kind," reconhecia nele os bocadinhos de si que tanto amava e reconheceu o universo paralelo de si mesma que ele representava.

"Lose the chance to find another who'd behave, " reconhecia as coisas que nunca tinha tido coragem para fazer na sua vida, e percebeu que não "tinha de" tantas coisas como achava. Percebeu que a vida podia ser diferente. Percebeu que ela mesma poderia ser diferente, sem assim se perder de si própria ou dos outros.

"Lose the vows we never spoke, lose the punch-line to the joke, " compreendia-o agora melhor do que ele próprio poderia supor. Melhor do que ela imaginava que fosse possível, porque finalmente percebeu que ele era ela mesma noutro momento, noutro contexto, noutra vida.

E que ambos nunca haviam estado destinados a encontrar-se ou a fundir-se, porque isso de alguma forma ia contra as leis da natureza.

"Lose your innocence as if willingly you gave-" Guardou-o com carinho na sua essência e deu-lhe um abraço com a alma toda.

Ele não compreendia, tinha demasiado medo para abrir os olhos ou sequer tirar as mãos da barra em frente do seu assento no carrossel que não podia abandonar. Ficara tanto por dizer, nos pressupostos que ele supunha. E ela mesma não sabia se devia dizer-lhe tudo o que queria, porque - afinal de contas - não se devem estragar os filmes alheios.


"Lose the kettle on the pot, you can lose the best you've got
But if you lose me in your heart. I must be saved"

Não lamentava nada do que vivera e finalmente confirmara a sua suspeita de que se não se importasse de fazer más figuras e de deixar transparecer o que era e sentia, se se deixasse invadir pelo que sentia, embora sofresse pelo caminho, não restaria nada de que se arrepender.

Sentir-se-ia em paz, não chorando porque acabou, mas sorrindo porque aconteceu.

E sorria.


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