A casa gritava por ela, em cada canto, em cada estante, nos bibelots das mesas, nas fotografias por toda a parte, nos livros abundantes e nas plantas que ela escolhera.
A casa estava em silêncio.
A casa gritava por ela e o grito tinha o som branco do ar condicionado. Omnipresente, intolerável, insuportável.
A casa sentia a falta dela como se fosse órfã. Como se lhe tivessem arrancado um membro. Como se tivesse perdido o sentido.
A casa parecia catatónica.
E a casa chorava - ostensivamente, nada menos.
Eles tentaram fazer com que a casa sossegasse; mudaram as divisões dela, transformaram os espaços que eram só dela, eliminaram as coisas que apenas ela usava e que a faziam mover, os projectos dela. O escritório, a cama, o canto das especiarias na cozinha.
Mas a casa não se deixava enganar.
E chamava por ela continuamente, como a cria abandonada de um animal selvagem.
Quase – quase – que era possível sentir o cheiro dela, ouvir o tilintar dos brincos dela, sentir o toque mão dela a ajeitar uma almofada, porque a casa lutava com todas as suas forças para que a presença dela não fosse apagada.
Porque ela estava no DNA da casa, indelével, intrínseca, sanguínea.
As paredes da casa eram dela, os quadros nas paredes transpareciam a essência dela, a disposição dos móveis fora estudada por ela e escolhida até à perfeição, os tapetes comprados por ela e o candeeiro da sala a ela oferecido.
A casa era deles e era dela. Era muito dela.
E eles tinham de viver na casa, os dois, sem que esta lhes desse um momento de sossego na lembrança de que ela existira, de que ela era ela, insubstituível, e que ela já não vivia entre eles, que ela tinha morrido.
E que nunca mais voltaria à casa.
1 comentário:
Vir aqui é sempre um prazer e uma descoberta. Como a expectativa que se tem quando se começa a leitura do jornal pela crónica de que mais se gosta.
Parabéns pelo talento e, sobretudo, pela generosidade de assim o partilhares :)
Beijinho!
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