quinta-feira, novembro 01, 2012

Patrícia

Patrícia ficou um ano à espera para entrar em Medicina.

Toda a vida tinha sido a melhor aluna da turma e sempre lhe disseram que com tão boas notas, bem que podia ser médica.

E a ideia foi ganhando asas com a possibilidade cada vez maior, quanto maiores eram as notas que tirava nas disciplinas do secundário. Vinte valores, vinte valores, dezanove valores, vinte valores, vinte valores, dezanove valores, dezoito valores ("esta vou ter de a subir!"), vinte valores.

No ano em que concluiu o secundário, todos os olhos estavam postos em Patrícia, a aluna perfeita. de certeza que ia entrar em Medicina, com aquelas notas. ui. de certeza.

Mas a pressão de todos os anos dedicados a um objectivo que se concentravam num só momento no tempo e no espaço, num par de exames miseráveis que seriam sempre incapazes de medir o quanto ela sabia, o quanto havia estudado, o quanto queria ser médica, o quanto era importante tudo aquilo para ela, mais as expectativas da família, dos pais, do namorado, dos amigos, dos professores, dos colegas, dos vizinhos, do mundo inteiro, bloquearam-na.

Não foi capaz. De repente, no exame nacional de Biologia, não sabia nada. Olhava para a página e não era capaz de escolher nenhuma opção, de dizer nada sobre as coisas que tinha explicado aos colegas que escreviam de forma afincada, desalmada, nas folhas de papel ao seu lado direito, ao seu lado esquerdo, à sua frente, atrás de si, na sala ao lado, na sala do outro lado, noutras escolas, no país inteiro. Aos milhares. E ela ali parada, com o tempo a contar sem parar, cada segundo que passava a ser menos um ponto na probabilidade de se sair bem, cada vez com menos hipóteses de entrar.

Querer desistir e não poder, que vergonha, como vai ser a vida se chumbar? "Não posso chumbar, não posso perder tudo."

Escrever atabalhoadamente coisas que tem quase a certeza que não estão certas, olhar para as perguntas sem perceber nada e escrever à mesma, porque pode surgir um milagre. Lembrar-se que é ateia. Deus não existe e os milagres também não. Mas se calhar ela pode estar errada relativamente a Deus como está quase certa que a opção que está a tomar no exame está errada. Continuar. acabar o tempo. Não concluir a prova.

O coração a bater muito, arrancarem-lhe praticamente a prova das mãos.

Sair da sala a chorar e chorar muito. Muito. Muito. Por todos os anos de dedicação em que não fez o que lhe apetecia, por todas as noitadas com amigos que perdeu, pelas horas de sono que não dormiu, pelas séries na TV que não viu, pelos momentos em que não esteve lá para os amigos, pelas festas de família a que não foi, pela música que não seguiu, pelas férias que não fez.

Para chegar ao momento mais crucial da sua vida e falhar redondamente, para não cumprir o seu destino, ficar à porta e não entrar.

Teve má nota, um mero 12 valores nesse exame. Não entrou em Medicina.

Esse verão foi terrível. Chorou todos os dias. Os pais, desesperados, mas sem meios para a pôr a estudar noutro país pediam-lhe que não chorasse, que a amavam muito, que ela era uma menina muito inteligente, que podia fazer outras coisas na vida.

Patrícia demorou 3 meses a recuperar. Mas quando o fez disse que não ia gastar o dinheiro dos pais em propinas de um curso que não queria.

E passou o ano em casa a estudar para entrar no curso em valia a pena investir a sua vida.

Entrou no ano seguinte, para gáudio geral.

E foi muito boa aluna todo o curso.

E acabou o curso com muito boa média e uma inclinação para a cirurgia geral.

E quando acabou o seu curso, percebeu que teria de enfrentar novamente o seu monstro. Mais uma vez, a vida a punha à prova com um exame, um momento confinado no espaço e no tempo em que toda a sua dedicação era mensurada de forma injusta.

O exame de acesso à especialidade parecia um reviver exato do pesadelo porque passara no secundário. Todos os olhos postos nela. Toda a gente a torcer por ela e a esperar boas notas. O seu sacrifício pessoal a pesar nada na balança do "senhor Harrison" - o nome que em geral os estudantes dão à Biblia gigante de conhecimentos que têm de devorar e decorar tanto quanto possível para acederem às especialidades na área da Medicina em Portugal.

A não valer nada o seu talento individual para a cirurgia, a sua tenacidade, a sua capacidade de estabelecer relações terapeuticas excelentes com os pacientes, de trabalhar em equipa. Tudo concentrado no que sabia de um livro gigante.

A preparação para o exame tinha tanto de exigente cognitivamente, como emocionalmente. Chorou muitas vezes nos ombros de outros que como ela choravam porque tinham enfrentado o mesmo pesadelo e sobrevivido, apenas para o enfrentar de novo.

Desta vez tinha companheiros de luta, amigos que como ela iam para a biblioteca estudar todo o dia para combater este demónio pessoal de arriscar tudo e não chegar, de apostar a vida toda e não conseguir. De sentir de repente que tinham perdido tudo, que se tinham lançado de um avião plenamente equipados e o paraquedas não tinha aberto.

Mas juntos sabiam que haviam de vencer o monstro. Haviam de conseguir romper aquele karma.

E seria a meras 3 semanas da data do exame final, que Patrícia daria aos colegas a lição das suas vidas.

A meio de uma vulgaríssima sessão de estudo, em plena biblioteca, rodeada dos companheiros e amigos com que passava os dias à volta do Harrison, romperia um aneurisma no cérebro de Patrícia. E a estudante ficaria hospitalizada, em risco de vida, num coma induzido e rodeada de todos que a amavam e os que lutavam diariamente com ela contra o que achavam que era o bicho papão das suas vidas. e que agora temiam pela vida dela contra um bicho papão diferente.



4 comentários:

rvs disse...

Esta história terá um fim fantástico :)

Helena Martins disse...

sim. às vezes os caminhos sofrem desvios antes de chegarem onde é suposto. Beijo enorme, fofinho!

aidagmartins disse...

Gostei muito da forma como contates a história
Deus permita que tenha um final feliz.

Helena Martins disse...

Mãe: a Patrícia acordou no dia em qu eoubliquei esta história :))