segunda-feira, junho 13, 2011

Camila

Lembrava-se de ser uma noiva feliz, cheia de sonhos e esperanças, apaixonadíssima e feliz, não se pode descrever de outra forma, arrebatada de um sentimento absoluto, inteiro, pleno.
Camila  era o centro da animação, sempre. Quem visse a sua energia inefável, o seu bom humor, a sua capacidade organizativa em prol dos outros, sempre em prol dos outros, não imaginaria quão opostas eram as águas profundas que lhe corriam na alma.
Quando Amália conheceu David, Camila foi conspiradora-mor da sua felicidade, arranjando pretextos perfeitos para Amália sair de casa, servindo de alibi para as suas escapadas com o namorado secreto.
Quando decidiram casar, Camila mostrou mais uma vez o seu valor como amiga. Ajudou na organização sem ser intrometida, mobilizou os amigos de ambos em surpresas infidáveis, animou como sempre um pouco mais a vida de todos.
Mesmo tratando-se de um casamento na igreja do Bonfim, como o seu fora. Mesmo segurando e ajeitando o véu da noiva à entrada da igreja num gesto parecido com o que tinham feito por si.
Mesmo perante um amor tão puro e promissor como o seu havia sido.
Marco e Camila namoraram 10 anos e ele estava já diagnosticado com cancro quando casaram. Camila amava-o e nada seria diferente. O amor tudo conquista e haveria de resgatar também a vida de Marco.
Continuaram a construção da sua casa e começaram os tratamentos, escrupulosamente seguindo todos os tortuosos ditames médicos. Camila deixou o seu emprego, a sua vida e a sua existência para o amparar a ele.
E ele lutou o mais que pode, numa luta perdida à partida. E deixou a Camila um legado bem maior do que a casa que o seguro de vida pagou; deixou-lhe a certeza de que ela fez tudo o que podia, que ele a amava mais que tudo o resto e que ela era mais forte do que supunha.
E que a vida é preciosa e se tem de viver momento a momento.
O vestido que levou para o casamento da sua amiga era preto e elegante. “Com o meu vestido preto, eu nunca me comprometo”, dizia num tom jocoso e coquete, mudando logo de assunto.
Porque se de alguma maneira queria estar de luto pelo seu amor, por tudo o que tivera e perdera, pelos momentos que vivera naquela mesma igreja 3 anos antes, os mesmos olhares, as mesmas sensações, o mesmo nervosismo e a mesma alegria profunda de quem se entrega sem reservas a outro ser humano para o melhor e para o pior, na saúde e na doença, não suportava que sentissem pena dela ou que isso fosse motivo de conversa e jamais roubaria o centro de atenções da sua grande amiga, a noiva feliz.

domingo, junho 05, 2011

Judite

Judite tinha um coração de ouro maciço, inteiro e reluzente.

E como qualquer objecto de metal deste tipo, era também impenetrável.

Tomava as maiores precauções para que não ficasse ferido, não se riscasse, não perdesse o brilho. Guardava-o como se tivesse um cofre, dentro de um forte, no meio de uma ilha.

E o seu coração crescia, em tamanho e peso, cada vez mais.

Até se tornar insustentável carregar com o seu coração grande, bonito, perfeito, doirado, pesado e inútil.

Porque os corações não são meras peças decorativas, são peças utilitárias.

E o coração de Judite quanto mais temia o uso mais se tornava pesado.

Até que um dia, farta de o carregar de um lado para o outro, Judite já só o queria entregar a alguém que a ajudasse com esta carga.

Ernesto tinha ar de quem conseguiria segurar o coração Judite porque era ele próprio grande e forte. Faltava-lhe no entanto a coragem e a sabedoria para compreender o valor do objecto que segurava nas mãos e um dia deixou o coração de Judite caído pelo chão, depois de o riscar, rachando-o a meio na queda.

Desgostosa de ver o seu maior tesouro partido e desprezado, Judite consertou-o na medida do possível e pensou que não o voltava a deixar por mãos alheias.

Mas os corações são um pouco como a loiça boa de jantar. Depois de se partir o primeiro prato, há sempre um pouco menos de cerimónia no uso do serviço. 

E Judite continuou a usar o seu coração que continuou a ser partido, rachado e riscado.

No princípio, parecia mais feio, mas, com o tempo, foi evoluindo; tornou-se filigrana, cota de malha cinzelada, fio de ouro... E com cada uso, o objecto parecia ficar mais leve, flexível, rico e permeável.

E a sua composição foi mudando, desrigidificando. O coração adquiriu o hábito de se mexer e começou a não conseguir passar sem isso, já não sabia estar inerte sem se sentir morto.

Porque o coração de Judite deixou de ser um coração de ouro maciço e passou a ser um coração humano, cheio de sangue mas cheio de vida. Capaz de sentir e de se saber vivo.

Então, Judite deixou de ter medo e começou a viver, agora que tinha um músculo que lhe bombeasse o sangue devidamente pelo corpo todo.