segunda-feira, março 16, 2015

A aventura continua aqui


A fonte das histórias já está calada há algum tempo. Sei que voltará a cantar e sinto as histórias correrem atrás da cortina da minha consciência.

Voltarei a escrever, mas as histórias Personificcionar ficam por aqui. 

O livro está prestes a sair e os espetáculos vão reaparecer em força. Talvez indique as datas no separador do blogue que lhe é dedicado - mas talvez não; pelo seguro vão vendo o que se passa aqui ou assinem a newsletter.

Até sempre e muito obrigada a todos pela companhia nesta viagem maravilhosa.


quarta-feira, novembro 19, 2014

Os postais da campanha

Ao longo da campanha de crowdfunding comprometi-me a fazer uma coleção de 7 postais e o público decidiu que seriam postais sob o tema das 7 cores do arco-íris. Como se trata de um projeto literário, decidi que acompanhando as imagens devem ir citações literárias.



Para já tenho a citação para a cor amarela (do Principezinho, um extrato do diálogo da raposa, sobre como os campos de trigo a farão lembrar o cabelo dourado do Principezinho)

e laranja (do grande Ary dos Santos, o início da canção "Cavalo à Solta" - é "Minha laranja amarga e doce, meu poema)


Faltam-me citações para:


  • vermelho (Já o sonho começa... Tudo vermelho em flor... - Camilo Pssanha, Clepsidra)
  • verde (só me ocorre o "verdes são os campos" do Camões)
  • azul 
    • (ocorre-me "o céu azul não era dessa cor antigamente" da Florbela Espanca);
    • do Óscar e a Senhora Cor de Rosa, a eplicação daquilo que o Óscar vê na Peggy Blue
  • violeta
  • indigo
    • “Hold on to your divine blush, your innate rosy magic, or end up brown. Once you're brown, you'll find out you're blue. As blue as indigo. And you know what that means. Indigo. Indigoing. Indigone.” 
      ― Tom RobbinsJitterbug Perfume
Têm ideias?

sábado, novembro 01, 2014

Sara

Há feridas que nunca saram. Choros que nunca param. Dores que nunca cessam, simplesmente criam habituação.

Perder um filho não é uma coisa natural, é o que mais violentamente vai contra a nossa natureza: por algum acaso temos uma palavra para quem perde os pais, mas a própria Língua se recusa a legitimar a violência atroz que é perdermos o ser que nos veio das entranhas.

Luis e Mariana choraram a perda da filha pequena e toda a gente lhes disse que eram novos, que haviam de ter outros filhos, que com o tempo a dor havia de diminuir.

Mentiram.

Apesar de terem tido mais dois filhos, Luis e Mariana nunca deixaram de sentir a falta da mana mais velha dos outros petizes, nunca a substituiram e nunca se esqueceram dela por um momento que fosse. Sara nunca deixou de lhes fazer falta; a sua falta só se tornou mais visível com o passar do tempo.

É um processo inexplicável e muito pouco aceite socialmente.

É suposto que as pessoas chorem muito quando lhes morre alguém querido e que depois com o passar do tempo se acostumem à sua ausência. De vez em quando podem recordar-se de algo mais específico, mas não é particularmente bem visto que as pessoas se delonguem demasiado no seu luto.

Mas para Luis e Mariana, cuja ferida nunca haveria de fechar, esta noção era simplesmente incompreensível.

E portanto, toda a vida os seus outros filhos ouviriam falar da mana mais velha, haveriam de ver-lhe as fotografias, haveriam de dizer que na família eram 5, eles os 4 mais a mana que era uma estrelinha.

E assim a vida prosseguiu, num destes paradigmas de família moderna.

Se há famílias monoparentais, casais do mesmo género, etc., a sua família haveria de ser uma destas que fogem à regra.

E como tal, mais do que eles os 4, a sua família havia sempre de contar com mais um, por muito que fisicamente não estivesse e não entrasse para as contas do IRS.

Sara morreu, mas não nos seus corações e nunca na sua família.


terça-feira, junho 03, 2014

A Campanha de Crowdfunding do Século Começou!

(o título é um pouco dramático, mas enfim...)

Neste link:


Podem encontrar e apoiar o crowdfunding para o livro deste bonito estaminé! :)) 

Conto convosco? :))) 


segunda-feira, abril 21, 2014

Sofia

(participação de Sofia Relvas na edição de 2014 do concurso "Dá-me uma foto e eu conto-te uma história")

Sofia era aquilo a que os ingleses chamam uma "wall flower", literalmente traduzido como "flor de parede", que se refere aos papéis de parede das casas - sabemos que o padrão com as flores está lá, mas às tantas já nem lhes ligamos e elas confundem-se com a paisagem. E Sofia era uma pessoa discreta e quase tímida, que não gostava de ser notada.

E no entanto, a jovem não era uma pessoa vulgar. Gostava de passear na sua bicicleta preto-e-ferrugem e de fazer os recados com ela. Tinha um cesto de arame cromado e gasto à frente e uma campaínha alegre e enferrujada do lado direito. E tinha um especial prazer em fazer atos de bondade um bocado ao desbarato, e sem nenhum motivo em particular.

Lembrava-se sempre da avó.

A avó dizia que os aniversários não eram importantes e nunca os havia comemorado. Nem os seus, nem os dos filhos, nem os dos netos.

Aliás, era frequente na sua aldeia remota registarem-se as crianças em dias diferentes daqueles em que efetivamente tinham nascido: era demasiado caro ir ao registo no próprio dia ou no seguinte: esperava-se por se ter alguma coisa a fazer na cidade e aproveitava-se para registar a criança. Como havia multa pela demora, resolvia-se o problema indicando uma data falsa, compatível com os requisitos da lei.

Ou seja, as datas de nascimento muitas vezes nem se sabiam bem ao certo. Então como podiam ser especiais? Eram mais uma data igual a todas as outras 364.

A avó dizia que não ligava a aniversários e acreditou nisso toda a vida, até que Sofia, que se encantava com festas de aniversário e aguardava ansiosa sempre pela sua, começou de pequena a ligar-lhe sempre no dia 20 de abril, quando descobriu que a avó fazia anos nesse dia.

Maria do Carmo passara toda a vida sem perceber que afinal ligava aos aniversários. Achava uma pieguice de gente da cidade, mas todos os dias 20 de abril passou a acordar com a certeza de que naquele dia ia falar com a neta e por extensão com o filho e a nora e esse ritual tornava o seu dia diferente dos outros. Era o seu dia de anos, não só porque fazia anos, mas porque de facto havia qualquer coisa de diferente nos 20 de abril da sua vida.

O telefonema era curto. Mas existia. Era aquele telefonema, mais ou menos à hora de jantar. Sentava-se com a televisão mais baixa que o costume e levantava-se para atender o telefone de disco que posava autoritário, como que para uma revista, numa mesa do corredor da casa.

Ao fim de dois ou três anos do ritual, começou a avó a retribuir a cortesia, e a neta passou a ser a pessoa a quem ligava para dar os parabéns. O único aniversário assinalado pela matriarca era a 23 de setembro.

A neta tímida, que ficava muito feliz com festas de aniversário e ao mesmo tempo muito nervosa com grandes atenções viradas para ela, era a única que tinha honras de nota à mão no calendário da cozinha, vendido anualmente pelos escuteiros que batiam a todas as portas da aldeia por altura das festas. A única a quem a avó aparentemente distante ligava.

A palavra correu a família e passados poucos anos, 20 de abril passou a ser o dia em que todos ligavam à matriarca - e ela (de forma mais ou menos seletiva, porque afinal a idade permite certas inconveniências sociais) retribuía nos aniversários daqueles que lhe apetecia lembrar e com quem lhe apetecia falar.

A avó não era de resto uma pessoa de trato fácil: autoritária e muito resingona, só se mostrava jovial com Sofia, que tinha aprendido com ela que as pessoas crescem, mas nunca deixam de ser crianças.

Quando a visitava na aldeia, levava a bicicleta velha consigo para dar umas voltas pelas redondezas e a avó repreendia-a sempre, que a bicicleta estava velha e era feia e parecia mal. E Sofia com a resposta pronta, não se deixava ficar, dizia-lhe trocista que então se calhar era melhor não ir à padaria da aldeia do lado buscar o pão que ela gostava mais para não parecer mal e as pessoas não ficarem a falar. A avó contestava com a graçola que só lhe pedia para ir à aldeia do lado para ir buscar o pão porque ela estava a ficar com um grande rabo e a neta dizia com um medo fingido que nesse caso ia já a correr fazer a volta de bicicleta antes que a avó decidisse aproveitar as suas coxas para presuntos.

A verdade é que a bicicleta que Sofia idealizara antes de lhe terem oferecido aquela que usava - e que era muito prática - era bem diferente; mas como acontece muitas vezes, deram o presente à parte de si que ela mostrava, e não à parte de si que ela guardava para as ocasiões especiais (o que aliás é um erro frequente na arte de dar prendas! Tendemos a gostar muito mais das coisas que nos oferecem para a pessoa que queremos ser, do que para a pessoa que somos!).

E lá ficou Sofia com uma boa bicicleta, que coincidentemente era também muito discreta. Embora a jovem gostasse dela, esta tinha pouco a ver com a bicicleta dos seus sonhos e não era cuidada com um esmero de maior.

A avó de Sofia morreu num dia 21 de abril, no dia a seguir ao seu aniversário, uma coincidência que apesar de tudo acabou por ser feliz: toda a gente lhe ligou e Maria do Carmo morreu contente, com a certeza de que era estimada por todos.

Sofia acrescentaria às coisas que aprendeu com avó, além do conhecimento de que toda a gente tem um coração que pode ser derretido com o gesto certo, a consciência de que é importante fazê-lo tanto quanto possível.

E que as pessoas existirão enquanto nos lembrarmos delas.

A partir desse ano, Sofia passou a substituir a chamada que fazia à avó todos os anos com um ritual ligeiramente diferente.

20 de abril (ou o sábado seguinte, se não pudesse tirar o dia) passou a ser o dia do ano em que tratava da bicicleta e a punha bonita. Começou por ser um simples arranjar de coisas em homenagem à avó que se metia sempre com ela por causa do seu ar descuidado, mas com o tempo passou a ser também uma homenagem à criança dentro de si, à parte de si que reservava para ocasiões especiais.

Começou por lhe pôr um cesto de verga (lindíssimo, mas um pouco fútil e certamente menos durável que um cesto de metal que seria a escolha "racional"), depois perdeu a cabeça e pintou-a de um vistoso rosa choque e finalmente colocou-lhe não uma, mas duas campaínhas, uma de cada lado, com sons diferentes.

No dia a seguir ao ritual de arranjar a bicicleta, passeava pela aldeia da avó e ia ao cemitério pôr flores.

Uma coisa tão simples e aparentemente banal como o aspeto da sua bicicleta fazia sentir-se mais bem disposta e recetiva ao mundo. Fazia com que sorrisse mais e se sentisse melhor consigo mesma. E as outras pessoas respondiam, reciprocando esta felicidade aparentemente fútil, com mais sorrisos, mais "bons dias" e mais simpatia. E referiam-se a ela com mais facilidade, por ser "aquela menina da bicicleta cor de rosa".

Porque se é certo que as pessoas existirão enquanto nos lembrarmos delas, a verdade é que só nos podemos lembrar daquilo que as pessoas nos mostram e daquilo que as pessoas nos dão.

sábado, fevereiro 08, 2014

João

Sem ti os dias são todos iguais, João. Percorro os mesmos caminhos todos os dias, o Metro da Trindade às 7h45 aos encontrões com gente ensonada e eu caminho, João, entre as mulheres aflitas com os sacos térmicos com a marmita lá dentro e os guarda-chuvas que cabem nas malas prontos para a chuva deste inverno que nunca mais acaba. Apanho o autocarro e atravesso a ponte, João, com os estudantes que dizem mal dos professores e da escola, sem saberem a sorte que têm, João.

Olho para a rua pelo caminho e gosto de ver o rio. O rio muda; os dias não.

Abro a porta da loja às 8h30 e pouso as coisas no balcão. a colega do turno da noite nunca aspira a montra e eu nunca me queixo. Não tenho mais força para discutir com ninguém João, tu gastaste-a toda.

Aspiro a montra e compro o café na D. Ermelinda. Sopro a chávena e não olho para ninguém. E depois bebo-o depressa como se fosse um remédio amargo, João.

às vezes penso em ti, de como me dizias de mansinho "Entre ti e mim, só há pele e espaço". E depois encurtavas o espaço e entravas na minha pele.

às vezes penso em ti, não. todas as vezes. todos os dias.

Lembro-me do cheiro do teu pescoço, da tua camisa, do teu cachecol. Lembro-me das tuas mãos e dos teus braços e de me encostar a ti nas noites frias em que me vinhas buscar para irmos a pé para casa, pela beira do rio, que "é diferente todos os dias, olha que lindo que é o Porto".

Saio do café fico na loja até ser hora de sair. Estão satisfeitos comigo na loja, João. Eu não.

Nunca mais fiz a ribeira a pé. Demora muito tempo e tu não estás em todo o lado.

Depois vou para casa, como a sopa e durmo, João. Tu não sabes, mas eu durmo contigo.

Trocamos a pele pelo tempo. Entre ti e mim só há espaço e tempo.

E não há pele porque tu fazes parte de mim, porque todos os dias carrego os restos de ti.

A Sofia que é simpática, diz que nas minhas palavras já só há perda. Coitada, está farta que eu lhe fale de ti ao telefone, João. Tornei-me chata, não tenho interesses, não saio de casa, não olho para ninguém.

O espaço que ocupam os restos de ti consomem a melhor parte minha vida. Sinto que tu ficaste com o melhor de mim e me deixaste as tuas sobras. E acho que é por isso que me agarro a ti. Porque se eu não ficar com nada em troca do que te dei, o que é que vai ser de mim, João? Como é que vou preencher o vazio do que me levaste?

Tornei-me numa daquelas pessoas que têm vida mas não a usam, como quem tem um carro sempre na garagem e nunca vai passear com ele. Acho que tenho medo de conduzir, e prefiro só apanhar o Metro.

Antigamente, João, o tempo era a ponte que encurtava o espaço entre as nossas peles, mas hoje o tempo é só o tempo que vai noutra direção e eu fiquei parada na estação onde te encontrei. à tua espera.


terça-feira, novembro 19, 2013

Vitória

Era como se tivesse dois corações.

O de aqui e agora e o das coisas que já não eram.

Era isso, Vitória tinha dois corações.

E os corações eram como se fossem salas que precisam de ser habitadas, ou plantas que precisam de ser regadas, ou animais de estimação que precisam de alimento e atenção.

E quanto mais atenção dava a um coração, menos atenção podia prestar ao outro.

No dia em que  soube da morte da prima, ainda não tinha recuperado a perda do filho, mas tinha sido logo a manhã em que vira alguma esperança surgir no horizonte, em que achara que estava na altura de se levantar, de se erguer, de continuar com a vida, que já chegava de depressão.

A notícia da morte da prima idosa, porém, atirou-a de volta para o ponto de partida e fez com que as saudades do seu pequeno David aumentassem novamente, com que novamente ressacasse como uma viciada o seu cheirinho, o aconchego do seu abraço. E tudo o que precisava, negociava com os deuses, como se fosse perfeitamente razoável, tudo o que queria naquele dia era apenas um abraço para a ajudar a passar o dia, era só isso, só um abraço pequenino, não era pedir assim tanto.

A morte da prima, o passar da prima do coração-do-agora para o coração-do-que-já-não-é aumentava este último, e como a maior parte do coração-do-que-já-não-é de Vitória era ocupada por David, esta perda deixava-a triste por si só, mas sobretudo lembrava-a da falta que lhe fazia o seu menino.

Como se ao aumentar o coração-do-que-já-não-é, aumentasse o quanto vivia a saudade de tudo que já não exstia, de tudo quanto já não tinha. De todos os momentos perdidos, de todos os locais que nunca mais visitara, de todas as experiências que nunca podeira repetir, de todos os momentos que não foram vividos na sua plenitude. De tudo que em tempos fora e que agora, bem, agora já não era. e que engrandecia esse coração.

E como nem nos corações temos o dom da ubiquidade, nestas estadias de longa duração no seu coração de estimação, Vitória ia descurando o coração vital  do agora, desleixando-o e deixando-o cada vez mais vazio, abandonado, com ervas daninhas.

E nem se dava conta, porque no seu coração-do-que-já-não-é as paredes não tinham uma racha sequer,  tudo estava perfeitamente tratado e era um sítio tão melhor de se estar.

Mas se a vida se vive no sítio onde se tem o coração, Vitória tinha vindo a deixar de estar no aqui e agora para estar numa terra de nenhures, que já não é, e ia falando com os seus mortos, os seus amigos distantes, aqueles que a habitavam de forma tão clara, mas que às pessoas aqui e agora eram invisíveis.

E isto era um verdadeiro problema para as muitas pessoas que aqui e agora a amavam e a sentiam cada vez mais distante, por muito que a tentassem agarrar.