(participação de Sofia Relvas na edição de 2014 do concurso "Dá-me uma foto e eu conto-te uma história")
Sofia era aquilo a que os ingleses chamam uma "wall flower", literalmente traduzido como "flor de parede", que se refere aos papéis de parede das casas - sabemos que o padrão com as flores está lá, mas às tantas já nem lhes ligamos e elas confundem-se com a paisagem. E Sofia era uma pessoa discreta e quase tímida, que não gostava de ser notada.
E no entanto, a jovem não era uma pessoa vulgar. Gostava de passear na sua bicicleta preto-e-ferrugem e de fazer os recados com ela. Tinha um cesto de arame cromado e gasto à frente e uma campaínha alegre e enferrujada do lado direito. E tinha um especial prazer em fazer atos de bondade um bocado ao desbarato, e sem nenhum motivo em particular.
Lembrava-se sempre da avó.
A avó dizia que os aniversários não eram importantes e nunca os havia comemorado. Nem os seus, nem os dos filhos, nem os dos netos.
Aliás, era frequente na sua aldeia remota registarem-se as crianças em dias diferentes daqueles em que efetivamente tinham nascido: era demasiado caro ir ao registo no próprio dia ou no seguinte: esperava-se por se ter alguma coisa a fazer na cidade e aproveitava-se para registar a criança. Como havia multa pela demora, resolvia-se o problema indicando uma data falsa, compatível com os requisitos da lei.
Ou seja, as datas de nascimento muitas vezes nem se sabiam bem ao certo. Então como podiam ser especiais? Eram mais uma data igual a todas as outras 364.
A avó dizia que não ligava a aniversários e acreditou nisso toda a vida, até que Sofia, que se encantava com festas de aniversário e aguardava ansiosa sempre pela sua, começou de pequena a ligar-lhe sempre no dia 20 de abril, quando descobriu que a avó fazia anos nesse dia.
Maria do Carmo passara toda a vida sem perceber que afinal ligava aos aniversários. Achava uma pieguice de gente da cidade, mas todos os dias 20 de abril passou a acordar com a certeza de que naquele dia ia falar com a neta e por extensão com o filho e a nora e esse ritual tornava o seu dia diferente dos outros. Era o seu dia de anos, não só porque fazia anos, mas porque de facto havia qualquer coisa de diferente nos 20 de abril da sua vida.
O telefonema era curto. Mas existia. Era aquele telefonema, mais ou menos à hora de jantar. Sentava-se com a televisão mais baixa que o costume e levantava-se para atender o telefone de disco que posava autoritário, como que para uma revista, numa mesa do corredor da casa.
Ao fim de dois ou três anos do ritual, começou a avó a retribuir a cortesia, e a neta passou a ser a pessoa a quem ligava para dar os parabéns. O único aniversário assinalado pela matriarca era a 23 de setembro.
A neta tímida, que ficava muito feliz com festas de aniversário e ao mesmo tempo muito nervosa com grandes atenções viradas para ela, era a única que tinha honras de nota à mão no calendário da cozinha, vendido anualmente pelos escuteiros que batiam a todas as portas da aldeia por altura das festas. A única a quem a avó aparentemente distante ligava.
A palavra correu a família e passados poucos anos, 20 de abril passou a ser o dia em que todos ligavam à matriarca - e ela (de forma mais ou menos seletiva, porque afinal a idade permite certas inconveniências sociais) retribuía nos aniversários daqueles que lhe apetecia lembrar e com quem lhe apetecia falar.
A avó não era de resto uma pessoa de trato fácil: autoritária e muito resingona, só se mostrava jovial com Sofia, que tinha aprendido com ela que as pessoas crescem, mas nunca deixam de ser crianças.
Quando a visitava na aldeia, levava a bicicleta velha consigo para dar umas voltas pelas redondezas e a avó repreendia-a sempre, que a bicicleta estava velha e era feia e parecia mal. E Sofia com a resposta pronta, não se deixava ficar, dizia-lhe trocista que então se calhar era melhor não ir à padaria da aldeia do lado buscar o pão que ela gostava mais para não parecer mal e as pessoas não ficarem a falar. A avó contestava com a graçola que só lhe pedia para ir à aldeia do lado para ir buscar o pão porque ela estava a ficar com um grande rabo e a neta dizia com um medo fingido que nesse caso ia já a correr fazer a volta de bicicleta antes que a avó decidisse aproveitar as suas coxas para presuntos.
A verdade é que a bicicleta que Sofia idealizara antes de lhe terem oferecido aquela que usava - e que era muito prática - era bem diferente; mas como acontece muitas vezes, deram o presente à parte de si que ela mostrava, e não à parte de si que ela guardava para as ocasiões especiais (o que aliás é um erro frequente na arte de dar prendas! Tendemos a gostar muito mais das coisas que nos oferecem para a pessoa que queremos ser, do que para a pessoa que somos!).
E lá ficou Sofia com uma boa bicicleta, que coincidentemente era também muito discreta. Embora a jovem gostasse dela, esta tinha pouco a ver com a bicicleta dos seus sonhos e não era cuidada com um esmero de maior.
A avó de Sofia morreu num dia 21 de abril, no dia a seguir ao seu aniversário, uma coincidência que apesar de tudo acabou por ser feliz: toda a gente lhe ligou e Maria do Carmo morreu contente, com a certeza de que era estimada por todos.
Sofia acrescentaria às coisas que aprendeu com avó, além do conhecimento de que toda a gente tem um coração que pode ser derretido com o gesto certo, a consciência de que é importante fazê-lo tanto quanto possível.
E que as pessoas existirão enquanto nos lembrarmos delas.
A partir desse ano, Sofia passou a substituir a chamada que fazia à avó todos os anos com um ritual ligeiramente diferente.
20 de abril (ou o sábado seguinte, se não pudesse tirar o dia) passou a ser o dia do ano em que tratava da bicicleta e a punha bonita. Começou por ser um simples arranjar de coisas em homenagem à avó que se metia sempre com ela por causa do seu ar descuidado, mas com o tempo passou a ser também uma homenagem à criança dentro de si, à parte de si que reservava para ocasiões especiais.
Começou por lhe pôr um cesto de verga (lindíssimo, mas um pouco fútil e certamente menos durável que um cesto de metal que seria a escolha "racional"), depois perdeu a cabeça e pintou-a de um vistoso rosa choque e finalmente colocou-lhe não uma, mas duas campaínhas, uma de cada lado, com sons diferentes.
No dia a seguir ao ritual de arranjar a bicicleta, passeava pela aldeia da avó e ia ao cemitério pôr flores.
Uma coisa tão simples e aparentemente banal como o aspeto da sua bicicleta fazia sentir-se mais bem disposta e recetiva ao mundo. Fazia com que sorrisse mais e se sentisse melhor consigo mesma. E as outras pessoas respondiam, reciprocando esta felicidade aparentemente fútil, com mais sorrisos, mais "bons dias" e mais simpatia. E referiam-se a ela com mais facilidade, por ser "aquela menina da bicicleta cor de rosa".
Porque se é certo que as pessoas existirão enquanto nos lembrarmos delas, a verdade é que só nos podemos lembrar daquilo que as pessoas nos mostram e daquilo que as pessoas nos dão.