sábado, fevereiro 08, 2014

João

Sem ti os dias são todos iguais, João. Percorro os mesmos caminhos todos os dias, o Metro da Trindade às 7h45 aos encontrões com gente ensonada e eu caminho, João, entre as mulheres aflitas com os sacos térmicos com a marmita lá dentro e os guarda-chuvas que cabem nas malas prontos para a chuva deste inverno que nunca mais acaba. Apanho o autocarro e atravesso a ponte, João, com os estudantes que dizem mal dos professores e da escola, sem saberem a sorte que têm, João.

Olho para a rua pelo caminho e gosto de ver o rio. O rio muda; os dias não.

Abro a porta da loja às 8h30 e pouso as coisas no balcão. a colega do turno da noite nunca aspira a montra e eu nunca me queixo. Não tenho mais força para discutir com ninguém João, tu gastaste-a toda.

Aspiro a montra e compro o café na D. Ermelinda. Sopro a chávena e não olho para ninguém. E depois bebo-o depressa como se fosse um remédio amargo, João.

às vezes penso em ti, de como me dizias de mansinho "Entre ti e mim, só há pele e espaço". E depois encurtavas o espaço e entravas na minha pele.

às vezes penso em ti, não. todas as vezes. todos os dias.

Lembro-me do cheiro do teu pescoço, da tua camisa, do teu cachecol. Lembro-me das tuas mãos e dos teus braços e de me encostar a ti nas noites frias em que me vinhas buscar para irmos a pé para casa, pela beira do rio, que "é diferente todos os dias, olha que lindo que é o Porto".

Saio do café fico na loja até ser hora de sair. Estão satisfeitos comigo na loja, João. Eu não.

Nunca mais fiz a ribeira a pé. Demora muito tempo e tu não estás em todo o lado.

Depois vou para casa, como a sopa e durmo, João. Tu não sabes, mas eu durmo contigo.

Trocamos a pele pelo tempo. Entre ti e mim só há espaço e tempo.

E não há pele porque tu fazes parte de mim, porque todos os dias carrego os restos de ti.

A Sofia que é simpática, diz que nas minhas palavras já só há perda. Coitada, está farta que eu lhe fale de ti ao telefone, João. Tornei-me chata, não tenho interesses, não saio de casa, não olho para ninguém.

O espaço que ocupam os restos de ti consomem a melhor parte minha vida. Sinto que tu ficaste com o melhor de mim e me deixaste as tuas sobras. E acho que é por isso que me agarro a ti. Porque se eu não ficar com nada em troca do que te dei, o que é que vai ser de mim, João? Como é que vou preencher o vazio do que me levaste?

Tornei-me numa daquelas pessoas que têm vida mas não a usam, como quem tem um carro sempre na garagem e nunca vai passear com ele. Acho que tenho medo de conduzir, e prefiro só apanhar o Metro.

Antigamente, João, o tempo era a ponte que encurtava o espaço entre as nossas peles, mas hoje o tempo é só o tempo que vai noutra direção e eu fiquei parada na estação onde te encontrei. à tua espera.