sábado, maio 11, 2013

Estrela (2)

Chamaram-lhe Estrela sem outro motivo que a sua raça ser Serra da Estrela.

Estrela era um cachorrinho bonito e ainda muito pequeno quando foi roubada a uma mãe com a resignação triste de quem já pariu muitas ninhadas para humanos que colecionam "raças puras".

O dono queria-a para cão de guarda da Quinta que tinha na "província". O Dr. Rui, um médico cirurgião ("operador", como lhe chamavam os locais) do Porto era dono da Quinta da Igreja, entre a Quinta dos Sousas e da Quinta do Moínho.

Estrela foi escolhida com gosto pela esposa do Dr. Rui e deixada aos cuidados do caseiro, um homem simples que lhes tratava da casa, da horta e dos pomares e que agora ficava também encarregue de cuidar da Estrela.

Como sucede com frequência às gentes simples de vidas muito ásperas, o sentido de poesia e o lado franciscano do caseiro não era especialmente forte, e a perspetiva de ter na propriedade um animal que não produzia riqueza nem alimento, parecia-lhe uma chinesice, apesar de compreender o conceito de cão de guarda.

Assim, Estrela - que entendia o caseiro tinha de ser um cão feroz para assustar os potenciais intrusos - nunca foi uma cadela acarinhada nem mimada em cachorra. Era mantida numa jaula durante o dia, solta à noite e alimentada com as sobras de todas as sobras (as escolhas dos restos dos humanos, filtradas pelas necessidades de outros animais que dessem leite, ovos, ou carne). E era açorreada com frequência, para lhe manter o rosnar fresco.

Ao fim de um ano, Estrela era o cão mais conhecido da população, chamada o "Cão da Igreja" e conhecida por ser um cão mau, feroz e incerto. Ninguém se atrevia a chegar perto da cadela, mesmo para lhe dar de comer.

A sua fama era tal, que o "Cão da Igreja" era usado para assustar as crianças, induzindo-as a portarem-se bem ou a comerem a sopa.

Aos olhos do caseiro, a cadela cumpria a sua função, e a Quinta da Igreja era a propriedade mais bem guardada de toda a região. Nada mais se podia pedir dela, nem dele.

Mas quase um ano após comprar a cadela, quando o Dr. Rui foi à terra ver a quinta e trazer fruta e carne "caseira", a opinião do patrão foi diferente.

Desolado ao ver a cadela que tinha escolhido com brio, infeliz e escanzelada, transformada num mito urbano e geradora de várias lendas sobre o seu mau feitio e força, o Dr. Rui decidiu que a pobre bicha merecia outros donos.

Pensou arduamente nos seus conhecidos, fazendo contas de cabeça à qualidade humana mas também moleza de coração dos vizinhos. Cogitou durante os dois dias em que esteve na herdade como iria formular o pedido e ganhou coragem antes de ligar para o vizinho da Quinta do Moínho, um homem conhecido pela sua bondade e paciência, casado com a professora primária da terra e pai de uma bebé de um ano.

Joaquim recebeu a chamada do Dr. Rui por quem tinha grande estima com surpresa e reservas. O Dr. Rui teve o cuidado de tratar a cadela pelo seu nome verdadeiro, pedindo-lhe se ele poderia ficar com a sua cadela "Estrela" que estava vacinada e saudável, porém muito carente - mas Joaquim percebeu que o amigo lhe falava mansamente do "Cão da Igreja", a pior e mais ruim fera das redondezas. Lembrou-o que tinha uma filha pequena, que não podia arriscar-se com um cão mau e recusou-se.

Mas Rui tinha tanto de inteligente como de casmurro, e tanto lhe apelou ao sentimento, tanto o convenceu de que a ruindade não era genética e que são os donos que fazem os cães, que ao fim de duas ou três chamadas, Joaquim lá aceitou, para gáudio e gratidão do Dr. Rui.

Estrela foi para a nova casa com o açaime posto, furiosa com uma troca que não compreendia.

E Joaquim, que fazia jus à sua boa fama, recebeu-a com o afeto e autoridade. Arranjou forma de a cadela poder andar à volta da casa, através de um sistema que engendrara em que a cadela ficava presa com uma trela ligada a um arame que dava a volta à cerca, permitindo ao animal ver a rua e andar bastante, sem nunca perigar a vida e o bem estar de habitantes e visitantes da casa.

Invariavelmente, a cadela era reconhecida como o "Cão da Igreja", causando pânico aos transeuntes e visitantes apesar da trela e do tempo decorrido. E apesar destes elementos, e de efetivamente já não ser o "Cão da Igreja" (quando muito, o "Cão do Moínho", porque era o nome da sua nova quinta) o certo é que Estrela continuava a não ser muito de fiar; não fazia mal aos de casa, mas ninguém se arriscava a deixá-la chegar aos restantes.

Um dia, Joaquim que gostava da cadela e a tratava com a esperança de quem cuida de um pássaro com a asa ferida, decidiu levá-la a passear para uma das suas eiras, para a cadela mudar de ares e caminhar um bocadinho. Levava-a pela trela, não fosse o diabo tecê-las - mas o diabo teceu-as e a cadela soltou-se dele com um puxão, desaparecendo da sua vista.

Resignado e convencido que a cadela teria voltado para a Quinta da Igreja, Joaquim procurou a cadela sem sucesso, voltando a casa resignado e com uma enorme sensação de derrota.

Quando chegou, a cadela esperava pelos donos deitada na relva à frente do portão, ofegante e feliz.

Depois desse dia, nunca mais se prendeu a Estrela.

Com o acesso às pessoas facilitado e bem vindo, Estrela pode demonstrar toda a doçura que lhe haviam reprimido nos primeiros tempos de vida. Era um cão manso e dócil de uma dedicação inabalável aos donos - sobretudo ao dono.

Estrela gostava de acompanhar a dona até à escola, indo à sua frente, qual estrela-guia. Para as crianças da escola, Estrela era uma extensão da professora, que sabiam que estava a chegar quando viam a cadela. E Estrela gostava de ficar na sala de aula, ao lado da secretária da professora a ouvir as aulas e a ver as crianças. Os alunos esqueciam-se que ela estava por ali e tropeçavam nela, pisavam-lhe a cauda, iam contra ela. E Estrela, outrora o "Cão da Igreja", limitava-se a levantar a cabeça e a voltar a pousá-la, na atitude pachorrenta dos cães muito habituados a gente boa.

Estrela vivia feliz e mimada pelos donos e os filhos dos donos que a tinham quase como se fosse uma irmã peluda e muito amada. Levavam-na para todo o lado e Estrela seguia-os, como uma alma que viveu um inferno e reconhecia com gratidão quem a tinha salvado.

De uma forma que os seus donos não poderiam perceber, Estrela compreendia que esta era uma segunda oportunidade, reconhecia os seus erros num passado mais profundo, e agradecia com amor incondicional cada bocadinho de carinho e atenção.

E num dia de festa, com direito a foguetes, Estrela já muito velhinha e debilitada morreu como se apagam as estrelas, afogada no tanque que ficava por baixo da mina onde se escondia quando tinha medo de alguma coisa - como trovoadas... ou foguetes.

E nesta repetição de destinos, com sofrimentos sarados, Estrela cumpriu e pagou o seu karma, para poder reencarnar depois, numa vida com um princípio melhor.


quarta-feira, maio 01, 2013

Mateus


( participação de Mateus Carneiro Martins no concurso do mês de março da página de facebook do Personificcionar)

Faz uma chave, mesmo pequena,
entra na casa.
Consente na doçura, tem dó
da matéria dos sonhos e das aves.

Invoca o fogo, a claridade, a música
dos flancos.
Não digas pedra, diz janela.
Não sejas como a sombra.

Diz homem, diz criança, diz estrela.
Repete as sílabas
onde a luz é feliz e se demora.

Eugénio de Andrade in «O sal da língua precedido de trinta poemas»
 
 
"Uma sombra é o resultado de a luz não conseguir chegar onde pretende." - traduziu Mateus da entrada da wikipedia.
"A Wikipedia sabe lá "o que a luz pretende"!" - respondeu ela muito depressa. "Se calhar a luz pretende desenhar no chão o nosso guarda-sol." 

Sorriu.

Sorriram.

De facto. Sabe-se lá o que "a luz quer".

Porque no fundo a sombra não deixa de ser o fruto visível da relação entre a luz  - que não se pode tocar - e um objeto tactil qualquer.

A sombra depende da intensidade da luz. da cor da luz. do ângulo da luz. Mas também depende da forma do objeto. Do material que o compõe (se é translúcido ou não, por exemplo). da posição em que ele se encontra.

Esta relação luz-objeto pode ser desejada e até planeada, como quando escolhemos o sítio onde pomos o guarda-sol - ou pode ser desagradável, como quando se atravessa uma sombra no nosso livro.

As sombras podem ser enganadoras, como quando os galhos de uma árvore parecem garras e podem ser os monstros que assustam as crianças. Podem ser reconfortantes, como a sombra  da aba do chapéu sobre os olhos.
 
A sombra da fotografia de Madrid era intencional, por exemplo, como se estivessem a fazer sombras chinesas, a contar uma história.
 
Um candeeiro de rua, bonito e alto, desenhava-se no chão como se tivesse quatro braços, que se movimentavam de formas diferentes.
 
Como se a mesma fonte de luz tivesse dois pares de braços. Quem sabe para dar abraços melhores, fazer as coisas mais depressa ou dançar mais graciosamente.
 
A figura que a luz desenhava no chão, o contorno de todos os corpos que a luz abraçava, unia-os na mesma massa, juntando os seus dois corpos no mesmo desenho onde podiam identificar pedaços de si, mas que ao mesmo tempo era bem mais alto que ambos os namorados.
 
O resultado da brincadeira que tinham feito era no fundo uma boa metáfora para a relação de ambos: duas metades da mesma alma luminosa, encontradas, dispostas a juntar todas as suas forças no mesmo corpo, na mesma vida.
 
E se uma sombra pode não ser mais que a impressão de um instante, uma coisa que até pode ser enganadora, o facto é que também apenas na presença de muita luz se fazem sombras fortes e bem desenhadas. E se tentamos por muitos meios eliminar muitas das sombras das nossas vidas com claraboias e candeeiros (e que mais é a noite se não o período de sombra que nos impõe o movimento da terra), a verdade é também que na presença de muita luz, a sombra de uma árvore, de uma cortina, de uma aba é fundamental.
 
Na presença de muita luz, uma sombra pode chegar mesmo a ser a diferença entre a vida e a morte, entre ter visão e ficar cegado, mesmo que momentaneamente.
 
E olhando para esta foto em especial, onde uma sombra une duas pessoas que passam a fazer parte de um candeeiro que ilumina a escuridão, Mateus pensava como as "almas gémeas" podem ser a mesma alma que se divide em diferentes corpos. Pensava na entrada da Wikipedia que dizia que a sombra é a ausência de luz. Sorria com o disparate e dizia à sua amada com doçura ao ouvido:
 
"a tua sombra é um lugar luminoso"
 
É, a sombra da fotografia de Madrid era intencional, como se estivessem a fazer sombras chinesas, a contar uma história.

E contavam.