quinta-feira, julho 19, 2012

As cidades

As cidades são só aglomerados de gente. Onde quer que vamos e qualquer que seja a natureza dos prédios, o que faz as cidades são as pessoas. Que caminham nas ruas, de cabeça erguida, no chão ou no iPhone. Que conversam nos cafés e nos bares e nos restaurantes e nas escadas dos prédios e nas esquinas. Que têm o coração partido, o coração a palpitar, o coração vazio.

Que sonham com as mesmas coisas sem o saberem. Que escalam as suas próprias montanhas que são todas diferentes, e que acham que são todas iguais.

Viajar não é ir para sítios diferentes, mas para pessoas diferentes. E se as pessoas que cruzam o nosso caminho e param estão destinadas pelas estrelas, então, no fundo, realmente, a cidade onde estamos é relativamente indiferente.

Porque nós somos o que somos. Não é porque dormimos numa garagem, que de repente nos tornamos carros. Porque não é essa a nossa natureza.

Só porque estamos numa cidade diferente, a nossa vida não é diferente, embora possa até ter um aspeto e contornos um pouco distintos. Nós moldamo-nos às cidades - mas as cidades também se moldam a nós.

E invariavelmente, depois de um periodo de deslumbramento, as cidades dão-nos o mesmo em todo o lado: pessoas boas ou pessoas más, amarguras ou contentamentos, sucesso, ilusão, aventura, mais uma racha no coração, o coração um pouco mais cheio. Pobreza ou riqueza. Isolamento ou ágora.

A vida que levamos é cá dentro de nós, filtra o que as cidades nos dão.

Mas mudar de cidade pode ser bom. Da mesma forma que mudar de namorado pode ser positivo. Porque, às vezes, há cidades que pelas suas características não se coadunam com a nossa natureza ou exaltam coisas de nós que preferíamos ver diminuídas. E por outro lado, pode haver outras que nos dão a oportunidade de crescer e a liberdade e o incentivo para sermos quem realmente queremos ser.

E é quando percebemos que a cidade em que estamos, a pessoa com quem nos relacionamos, nos ajuda a sermos uma pessoa de quem gostamos mais, exalta as qualidades que almejamos, nos incentiva a fazer coisas novas e a crescer, que percebemos que estamos em casa.

E por isso, é relativamente indiferente a cidade em que estamos, no mundo.

Exceto se estivermos em casa.

"E é sempre a primeira vez / em cada regresso a casa / rever-te nessa altivez / de milhafre ferido na asa"







Home


Cities are only clusters of people. Wherever we go and whatever the nature of the buildings, the essence of a city is the people who live there. Who walk the streets, with their heads held high, facing the ground or the iPhone. Who talk to others in cafes, and bars, and restaurants, and stairs, and corners. Who have broken hearts, beating hearts, racing hearts, empty hearts.

Who dream about the same things and are unaware of it. Who climb their own mountains, which are all different, but they think are all the same.

Traveling is not about going to different places; it’s about going to different people. And if the people who cross our path and stop are somehow destined by the stars, then, actually, really, the city where we are is relatively indifferent.

Because we are what we are.
 Just because you sleep in a garage, that does not make you a car.
Because that is not your nature.

Just because we are in a different city, our lives aren’t really different, although they may look and feel differently. We are shaped by the cities we live in – but the cities we live in are also shaped by us.

And invariably, after a period of wonder, cities give us pretty much the same everywhere: good people or bad people, bitterness or sweetness, success, deception, adventure, another crack in the heart, the heart a little fuller. Poverty or wealth. Isolation or crowd.

The life we lead is inside of us. It filters what cities give us.

But it can be good to move from a city, in the same way that it can be important to move on from someone. Because sometimes, there are cities whose characteristics are not consistent with our own nature, or that bring out things in us we would rather see diminished. Some others, on the other hand, might give us the opportunity to grow and the freedom and encouragement to be who we really want to be.

And it is when we realize that the city we are in - the people with whom we build relationships - help us be a person we like better, bringing out the qualities we so desire, encouraging us to do new things and reach higher, that we realize that we are home.

And so, it is relatively indifferent what in the world is the city where we are in.

Unless we are home.

terça-feira, julho 03, 2012

Zeca

Os caracóis dourados do cabelo de Zeca, um miúdo magrito de 6 anos, parecem molas que saltitam na sua cabeça feliz, enquanto ele corre da maneira livre e desgovernada que os putos traquinas fazem.

Zeca quer experimentar tudo, viver tudo e conquistar tudo. Gosta de chocar os adultos com as perguntas que faz e as coisas que diz.

"Tu és uma gordalhufa. Tens um cu gigante." - diz, esticando os braços para dar ênfase às suas já expressivas palavras - "Chega o teu cu para lá que me vais esmagar com o teu cu, ó gordalhufa." - diz ele à prima que o irrita porque se quer sentar ao seu lado, no banco que ele queria ocupar sozinho.

As coisas que diz são ácidas, mas nunca amargas. Saem-lhe puras e inconsequentes, fruto da sede com que Zeca vive o mundo e a vida.

"A tua pila é grande? Qual é o tamanho da tua pila?" - pergunta ao primo mais velho mirando-o de cima a baixo, em avaliação.

Os pais ficam aflitos e tentam reagir com calma, explicando que esse é o tipo de coisas que não se pergunta.

O Zeca não percebe porquê.

"Porquê? Ele tem vergonha da pila dele? Porque é pequenina? Assim, mais pequenina que o meu dedo mindinho? A pila dele é mais pequenina que a de um bebé? E ele não lhe consegue segurar nem para fazer xixi?"

Faz as perguntas ininterruptamente, sem esperar resposta, e depois passa o resto do dia a falar do primo mais velho e de como ele tem uma pila pequenina e vergonha da pila pequenina. Confabula sozinho e faz troça do primo, diz que ele não tem namorada porque não quer que ela lhe veja a pila pequenina.

A seguir diz que queria comer o bolo todo, se o deixassem, mas não chega a conseguir acabar a primeira fatia. Mete-se com os tios mais brincalhões e provoca-os dizendo mal do clube de futebol deles, se não forem o seu, ou picando-os com tiradas a dizer que eles cheiram mal.

Usa os insultos mais fortes que a sua inocente mente de criança consegue conceber para os provocar. Mas é tão transparente no seu objetivo, que o máximo que consegue é suscitar um sorriso e um desafio.

"Cheiras a cuecas sujas, ó cabeça de cocó!"

E da boca do Zeca saem sem espinhas as verdades que ninguém tem coragem de dizer, como quando foi ele o primeiro a tirar da cartola que o tio divorciado tinha uma namorada nova, a "amiga" que aparecia com ele de vez em quando - coisa que todos sussurravam, mas ninguém se atrevia a pronunciar.

Apontou-lhes o dedo, disse que eram namorados e mandou-os dar um beijo na boca. Um ataque indefensável, por parte de alguém que tenha mais de 13 anos, perante uma verdade tão óbvia saída da boca de uma criança tão pequena.

O Zeca diz as coisas politicamente incorretas que fazem as delícias de todos os que não estão envolvidos. que se repreendem na hora e que depois se contam à socapa da criança, sussurradas e gargalhadas.

No mesmo dia em que a família dizia a Arminda que a cor de cabelo nova lhe ficava muito bem, Zeca surge do nada, aponta para as raízes do cabelo da rapariga - que eram a única parte da cabeleira que tinha conseguido absorver adequadamente uma cor muito mais clara que a sua cor natural - e pergunta com sinceridade:

"Prima, porque é que só pintaste esta parte do cabelo?"

O mundo de Zeca é temperado de sabores fortes e emoções intensas, e no entanto, não é um miudo estragado de mimo. É só um pequeno aventureiro destemido, que nas suas brincadeiras é mais famoso e melhor jogador que o Cristiano Ronaldo, é o rapaz mais fixe do mundo e é tão alto, bonito e forte como aos seus olhos só é o pai.

A sua valentia de vento é cómica perante o seu aspeto franzino. A sua picardia é facilmente suspendida com um tom de voz mais sério e uma justificação. Já com seis anos, Zeca sabe que nem para ganhar numa caçadinha qualquer se atravessa a rua sem dar a mão a um adulto. E se a mãe manda fazer alguma coisa com tom de voz sério é porque é mesmo para fazer. mesmo que seja contrariado e a reclamar.

A acutilância dos seus comentários selvagens é igualada pela doçura distraída com que faz declarações de amor desmedido e de importância avassaladora às pessoas da sua vida.

Zeca é o que é, sem aditivos nem conservantes. Sem intensificadores de sabor ou reguladores de acidez. Sem corantes.

E a forma como desafia todos e tem o coração perto da boca é algo que os adultos da família gostam de preservar só mais um bocadinho, como quem atrasa o despertador de um sonho bom mais 5 minutos.

Porque todos sabem também que o mundo não é para sempre o ambiente seguro da família e dos amigos de infância, e mais que nada querem que ele esteja bem e protegido.

E que ele não vai ser para sempre um miúdo engraçado a quem se perdoa tudo.

Que mais cedo ou mais tarde, Zeca terá de aprender o que se pode (e não) dizer em contexto social, das perguntas que se podem e não podem fazer em público. Das preferências e desagrados que se podem livremente expressar, das opiniões de que se pode fazer bandeira. Para seu próprio bem.

Até lá, a família vai guardando como relíquias douradas as histórias das pequenas façanhas do puto esperto, no baú das memórias divertidas com que anos mais tarde se vão entreter os convivas, para delícia de todos e embaraço generalizado do Dr. José.


domingo, julho 01, 2012

Márcia, shhhhh

À noite, o som das ondas a bater continua e impiedosamente nas rochas pode ser tão calmante como assustador.

É o som da inevitabilidade da vida, é o som daquilo que não podemos controlar e que é mais poderoso que nós.

A onda bate com força na rocha ou na costa e depois faz "shhhhhhh", como se pedisse desculpa ou silêncio.

Quando o mar não está agitado, quase só se ouve o "shhhhh" ritmado das ondas a recuar, progredindo na praia, se a maré estiver a encher, ou caminhando de volta para o mar alto quando a maré decresce, dançando para cá e para lá no planeta uma salsa devagar.

Pedindo silêncio à costa que erode lentamente em cada pancada de água, com que a seguir a acaricia e lhe pede perdão.

e silêncio.

Shhhhhhh.

A Márcia, de nada adiantava viver no último andar do prédio da linha costeira, com vista para o mar, com mais assoalhadas do que precisava, piano de cauda e empregada interna.

De nada servia ser a esposa modelo, e ir todos os dias ao ginásio. fazer voluntariado e cursos de arranjos florais em Serralves às quintas feiras de tarde. De nada serviam as surpresas que comprava ao marido com o cartão de crédito dele. De nada servia o curso superior em Filosofia e o bom gosto. Participar em chás de caridade no Sheraton da Boavista. Ser bem relacionada.

"O mar enrola na areia / Ninguém sabe o que ele diz / Bate na areia e desmaia / Porque se sente feliz"

E como o mar pode ser temperamental, também o marido de Márcia era imprevisível. A sua vingança contra os atos invisíveis, que ele concebia, imaginava ou inventava que Márcia tinha perpetrado, era cruel, calculada e mesquinha.

Não a marcava nunca.

E pedia-lhe desculpa muitas vezes. Outras vezes, já sabia que ela perdoava mesmo sem ele pedir, porque ela própria inventava justificações para o seu comportamento vil: o trabalho, o stress, o amor demais que sentia por ela e que o cegava e fazia perder a razão e o controlo.

A violência que o Dr. Rui exercia sobre Márcia era tão refinada como a própria Márcia e levara anos a atingir os níveis de perfeição com que a executava. Começara com pequenos reparos às suas ações e aparência, "para bem dela"; passou a críticas e escrutínios rigorosos acerca de todos os seus comportamentos e opções. Em vagas sistemáticas e ritmadas.

E uma vez que a auto-estima dela estava completamente dependente da aprovação do marido, o Dr. Rui assumiu o controlo total.

Como se ela se tivesse tornado no seu projeto privado, o seu bonsai de estimação, que ele modelaria a seu gosto. Cortando fora as partes que não interessavam.

Com o tempo, Márcia foi-se tornando mais e mais maleável, até fazer tudo o que ele queria.

Mas nessa altura já não chegava. Porque Rui tinha-se habituado a mandar e a fazer Márcia sacrificar-se. O seu "melhoramento" já não era o propósito das chantagens, manipulações e humilhações: era o meio com que alimentava o seu ego e a sua relação.

Modelava-a da mesma forma que o mar modela a costa, que conquista e engole se não se colocam paredões nas praias.

Fazendo o mesmo que o mar com as suas ondas. Batendo e pedindo silêncio de seguida. Magoando e pedindo perdão, no ritmo cíclico e intervalado das vagas.

Erodindo-a e invadindo-a progressivamente, de todas as vezes em que ela assumia a inevitabilidade dos factos e aceitava ficar calada.





O Mar Enrola Na Areia


O mar enrola na areia
ninguém sabe o que ele diz
bate na areia e desmaia
porque se sente feliz

até o mar é casado - ai!
até o mar também tem mulher
é casado com areia - ai!
bate nela quando quer

até o mar é casado - ai!
até o mar tem filhinhos
e casado com areia - ai!
e seus filhos são os peixinhos

ó mar tu és um leão - ai!
a todos queres comer
não sei como os homens podem - ai!
as tuas ondas vencer

ó mar que te não derretes - ai!
  navios que te não partes
ó mar que não cumpriste - ai!
  o que comigo trataste

ouvi cantar a sereia - ai!
no meio daquele mar
tantos navios se perdem - ai!
ao som daquele cantar

até o peixe do mar- ai! 
depenica na baleia
nunca vi homem solteiro - ai! 
procurar a mulher feia