quinta-feira, maio 19, 2011

Teresinha (2)

Teresinha Villaverde fazia ballet na adolescência, como qualquer menina de bem. E se Teresinha era a princesa das meninas de bem, era também dedicadíssima ao seu ballet que praticara durante 12 anos.

Aos 18 anos, com a entrada na Faculdade, houve muito na sua vida que mudou e deixou de fazer sentido. E com isso, também o ballet.

Mas um ano depois, Teresinha sentia-lhe a falta. Não porque gostasse especialmente de se ver de cor-de-rosa literal e figurativamente, mas porque se sentia a perder destreza, agilidade e sobretudo flexibilidade.

Decidida a distanciar-se da imagem convencional e perfeitinha que tinha, agora que estudava Comunicação Social e queria ser "alternativa", foi com algum entusiasmo que se inscreveu nas recém inauguradas aulas de Tai-chi que dava um seu conterrâneo, no centro da Santa Casa da Misericórdia.

O professor de Tai-chi era simultaneamente o professor de Chi-kung e de Kung-fu. Era um homem muito alto e muito magro, de nariz adunco e barbicha, como alguns vilões dos filmes de desenhos animados infantis. Casado com uma senhora de Braga, vivia na capital de distrito e fazia a sua vida entre Braga e o Porto, difundido as 3 artes em que se tornara mestre no Japão.

António era um homem um pouco amargo e zangado com a vida que não dispensava conhecimento algum que não fosse a troco de dinheiro, porque, dizia, também lhe tinha custado muito ir para o Japão e tinha de rentabilizar as coisas que aprendera com sacrifício.

Exercia ainda acumpunctura e shiatsu e andava a tentar implementar aulas de meditação na localidade, mas sem grande sucesso até à data.

António encarnava de alguma forma uma sabedoria e um exotismo que apenas os lugares muito distantes têm e encantava as senhoras de Vila Verde com estes mistérios, angariando várias clientes para as suas aulas.

Quando Teresinha manifestou o seu contentamento com as aulas de Tai-chi que lhe devolviam a mobilidade que sempre tivera e estimulavam a sua flexibilidade de que tanto sentira falta, António sentiu um orgulho muito especial. Teresinha era muito popular e admirada na terra e representava uma excelente publicidade a todos os níveis que estivesse satisfeita com as aulas.

Envaidecido, António propôs ajudar Teresinha, compartilhando algumas técnicas orientais diferentes para ajudá-la a recuperar ainda mais depressa a flexibilidade de uma bailarina clássica.

Combinaram nas instalações da Misericórdia uma hora antes da aula de Tai-chi. A aula não surpreendeu Teresinha que era perita em exercícios de flexibilidade e não trouxe grande novidade às técnicas que já conhecia, à parte incorporar formas diferentes de respirar nos exercícios. Mas a António, a aula trouxe novidades. Gostava de um desafio e não sabia perder. Teresinha Villaverde era dona de uma figura admirável, e tinha um controlo incomum sobre cada músculo do seu corpo de bailarina.

Cinco minutos depois de a aula começar, António teve a clara noção de que a sessão seria uma desilusão para Teresinha que aparentemente já fizera cada um dos exercícios que lhe propunha. Mas António não dava ponto sem nó.

No final da aula, e enquanto falavam de como tinha corrido e das diferenças entre estes exercícios e os do ballet clássico, António revela que ainda tem uma última e derradeira carta na manga.

Técnicas orientais que sabe que não pode partilhar com a maioria das pessoas da terra, gente tacanha, sem grandes horizontes e muito presa a conceitos do passado, mas que sente que pode partilhar com Teresinha que é uma rapariga de mente aberta e com grande flexibilidade física e mental.

E então António propõe a Teresinha, sob o abrigo da partilha de conhecimentos orientais exclusivos, e sem qualquer interesse da sua parte, a prática de posições sexuais milagrosas no ganho da flexibilidade.

Ora bem, Maria Teresa Villaverde era cada vez mais uma jovem alternativa e moderna. Mas Maria Teresa Villaverde era bem neta da sua minhota e matriarcal avó Lucinda, de espinha vertebral direita e valores católicos e cristãos mais profundamente enraizados do que supunha.

Na fracção de segundo que se seguiu à proposta de António, Teresa não ouviu nenhum som, até ouvir o estalo que dava de expressão inalterada na cara de António, directamente na sua face esquerda, com a sua mão de bailarina que redescobria inusitadamente agilidade e força.

O segundo que se seguiu ao estalo foi também silencioso. E quando terminou, Teresinha caiu em si, achou pouco inteligente a sua atitude e chegou a temer pela vida, porque António era um homem quase com o dobro do seu tamanho, o dobro da força e conhecimentos marciais letais.

Mas António permaneceu paralizado nesse instante e Teresinha saiu rapidamente pela porta fora.

O que desconheciam ambos até à data é que um estalo bem dado é uma arma indefensável e universal. E que não há defesa possível de um estalo merecido, depois de se fazer algo que se sabia à partida que não se devia ter feito ou devia ter dito.

Porque um estalo bem dado atinge uma pessoa de forma cirurgica nesse ponto vital e secreto que é o ego. um ponto a que nem os maiores mestres orientais conseguem chegar com facilidade, mas a que as donzelas bonitas, indefesas e voluntariosas têm um acesso privilegiado.


(Teresinha já tinha aparecido em Outubro no Personificcionar e decidiu repetir a visita.)

terça-feira, maio 17, 2011

Martina

Martina aprendeu com a vida que não se deixa fugiu amor nenhum. Aprendeu às suas próprias custas que o amor, quando se nega, tarda em voltar. E às vezes tarda mesmo muito.

E por isso quando Martina conheceu Gilberto atirou-se de cabeça, como vinha aprendendo há vários anos.

Martina aprendera à custa dos seus erros e das suas próprias protecções emocionais que nada há que seja pior que o arrependimento e o vazio depois do que poderia ter feito "se" e apenas "se".

E decidira desde há muito que não voltaria a ser assaltada por esses pensamentos.

E Gilberto cozinhou-a como a uma rã. Foi aquecendo a água da panela enquanto ela estava viva lá dentro, para tornar a sua carne mais tenra quando finalmente a consumisse.

Martina foi mudando, cedendo até já não poder mais. Desta vez aprendeu que afinal não se pode dar desmesuradamente, e que a vida é assim, uma madrasta que passa anos a ensinar uma coisa, apenas para depois ensinar o contrário.

E que Gilberto mentia, enganava e manipulava Martina, sob o manto de uma transparência e uma brutalidade infantil e pura.

E que toda a gente tinha pena dela, da forma como se deixava cozinhar, saindo e entrando a panela que não parava de aquecer, cozendo mais um bocadinho de cada vez.

Só que a mulher-rã é uma espécie em vias de extinção. E Martina, ao invés de ficar mais macia, à medida que a panela aquecia, ficava mais dura, mais amarga, mais imprópria para consumo. Até que, envenenada pela própria água em que a escaldavam, saltou para fora.

E no fim saiu da panela.

escaldada.

segunda-feira, maio 16, 2011

Padre Daniel

O temor era algo que o tomava de assalto e que tentatava incutir nas ovelhas do seu rebanho.

O temor a Deus.
O temor aos Santos.
O temor ao Fogo do Inferno.

O Padre Daniel era um homem consciencioso, rigoroso, meticuloso, estóico, disciplinado.

Na sua infância tinha tido um episódio de que mantinha hoje em dia segredo absoluto, fora possuído e exorcizado. Salvo pela luz da salvação eterna e pela água benta da Santa Madre Igreja. E ainda hoje tomava frequentemente banho com água benta para afastar e dissuadir potenciais demónios que de si se quisessem apoderar.

O Padre Daniel era dedicado e respeitado por toda a comunidade, mas todos sabiam que do padre Daniel não se podia esperar misericórdia.

Um dia ouviu Rufino em confissão, um adolescente com um atraso mental, e incutiu-lhe a importância do temor para não mais pecar, como era aliás sua imagem de marca.

Rufino saiu perturbadissimo da Igreja a murmurar coisas que ninguém compreendia.
Dias depois as pessoas que estavam com ele no centro de dia, preocupadas, chamam o padre, pois acham que Rufino deve estar a começar a entrar em transe.

Rufino repete "morTE, morTE, morTE, morTE, morTE, morTE, morTE, morTE, morTE" sem parar, dia e noite.

Mas o Padre Daniel não percebe o que é que isso tem a ver com ele. Na confissão repreendeu Rufino pelos seus actos, mas não falou da morte.

Conjectura-se que Rufino possa estar a escalar no caminho para a santidade ou demonização e o sacerdote começa a considerar a necessidade de chamar alguém versado na arte do exorcismo, quando Rufino não consegue parar de se balaçar chamando pela terrível ceifeira, ou anunciando a sua chegada.

Chama-se o médico, o psicólogo, a assistente social, que não lhe conseguem arrancar mais nenhuma palavra.

Rufino está por um fio, entre o internamento, a sedação absoluta e o exorcismo. Nenhum dos processos é agradável.

Na aldeia discute-se que o rapaz deve ser morada aberta, que é caso de arrepiar.

Até que surge, escrito a vermelho na parede da igreja uma aviso com letra de primária que dissuade todos da transcendência do caso e obriga o Padre Daniel a repensar a sua política de ensinar a temer:

"Torem das árvores os galhos.Rotem em torno do temor e a morte estará a um metro. Tremo pelo termo deste caso."

Catarina

Quando era uma principiante na arte do jazz recusaram a sua voz cristalina e surpreendente com base na interpretação. Disseram-lhe com sobranceria que "lhe faltava dor de corno para cantar jazz em condições".

Catarina saiu do clube pior que estragada. No auge dos seus 22 anos era dona de uma técnica vocal perfeita, fruto de anos e anos de estudo, de exercícios incontáveis, de aulas de conservatório, cursos livres dentro e fora do país e sessões de terapia da fala regulares.

Dominava a improvisação e tinha um ouvido fantástico que lhe permitia sempre perceber se e quem estava dentro ou fora de tom. Tinha swing, compreendia o ritmo como se fosse o bater do seu coração que se alterava quando ela outra pessoa dava o tempo. Conhecia os standards quase integralmente.

Tocava piano com mestria e percebia muito de todos os outros instrumentos, porque Catarina praticamente respirava o jazz e assistia a todas as jam sessions, aulas e concertos que podia. A sua própria entoação verbal era sincopada.

E fazia teatro, porque lhe tinham dito que a interpretação era fundamental no jazz.

Cantar no Hot Club era um passo natural nesta evolução fulgurante, digna das maiores honras académicas e prémios musicais.

E por isso, foi com indignação, mais do que com desânimo, que Catarina recebeu do grande especialista do clube a notícia de que o que ela era ainda não chegava para os padrões deles, quando gente "pior que ela" já lá tinha estado.

"Se quisesse ser uma desgraçadinha tinha-me dedicado ao fado", pensava com os seus botões tão zangados como ela.

E voltou à sua vida academicamente perfeita tão frustrada e revoltada com aquela injustiça, a primeira que sentia verdadeiramente queimar-lhe na pele, que começou a tornar-se na interprete e compositora que sempre estivera destinada a ser.

segunda-feira, maio 09, 2011

Elisa

Vai ao ginásio todos os serões. Faz solário. Estica o cabelo preto que pinta de 3 em 3 semanas, religiosamente. A sua roupa é sempre bem escolhida e até as peças com que faz spinning são pensadas cuidadosamente: calções um pouco abaixo do joelho, justos, e top que deixa o ombro à mostra, revelando as alças coloridas do bikini por baixo. E sim, Elisa usa maquilhagem também no ginásio, porque uma pessoa nunca sabe quando é que vai conhecer alguém interessante e mais vale prevenir.

Elisa tem todo o ar de quem está a arrumar as suas coisas calmamente no balneário do ginásio, enquanto faz conversa com todas as mulheres que a rodeiam, comentando a festa do Habana Club para os membros do health club no fim de semana passado. Foi boa, mas o Alfaiate é que é, e não se paga só para entrar, apenas aquilo que se consome. E não se tem filas.

Enquanto comenta as suas opiniões com as colegas que vão dispersando, Elisa verifica as borbulhas, as unhas de gel e o peso na balança disponível. Tenta captar as atenções das pessoas que vai encontrando na sua imagem de verniz, polida ao extremo, mas a cada três frases diz um palavrão e comete outro erro gramatical. E só consegue dizer bem de algo quando é uma rampa de lançamento para criticar qualquer coisa.

Elisa é espampanante, divertida e "um ponto". Aparece em todos os eventos do ginásio e já namorou com alguns dos seus elementos, não porque estivesse especialmente enamorada pelas suas personalidades, mas porque dá muito valor a um corpo bem definido e adora a sensação de entrar num sítio e de ser alvo da inveja de outras mulheres.

Elisa tem um sucesso mediano no seu trabalho, tem 36 anos bem conservados, trabalha com uma disciplina estóica na sua aparência impecável. Sacrifica-se diariamente por um objectivo que não sabe bem o que é, mas que pelo menos vai tacteando. E no entanto, as únicas alturas em que se sente realmente viva e relevante são pouco mais do que estes momentos em que se sente a raínha do ginásio e fala com pessoas que na verdade até nem estão assim tão interessadas naquilo que Elisa tem para dizer.