sábado, janeiro 29, 2011

Amélia

No dia em que o avô Jaime morreu, Amélia teve um  sentimento ambíguo, que não era de todo diferente de tudo o que sempre sentira em relação ao velho.

Nunca se haviam entendido plenamente. Jaime nunca percebera nem valorizara os esforços de Amélia por dar aos netos uma educação de valores sólidos e tradicionais e por construir com Vasco uma família exemplar e honesta. Amélia nunca percebera nem valorizara os esforços de Jaime por fazer dos netos seres pensantes e tolerantes e por querer que o filho lutasse pelos seus sonhos e afirmasse as suas opiniões.

Tinham um perante o outro sentimentos ambíguos de carinho pela forma como sentiam que ambos amavam e cuidavam das pessoas que lhes era mais queridas, e de aversão pela completa oposição dos seus valores e prioridades.

Queriam ambos a mesma coisa: ver Vasco e "as crianças" bem e felizes, mas queriam tornar isto possível de formas antagónicas e incompatíveis, o que resultava frequentemente num "choque de titãs", em que Amélia queria afastar os filhos da influência nefasta e ideias retorcidas de Jaime e Jaime queria afastar o netos dos espartilhos mentais a que Amélia chamava "valores tradicionais".

Acrescendo a tudo isto, Amélia achava a relação de Jaime com Margarida uma aberração da natureza. Claramente, a escritora 30 anos mais nova que o seu sogro não andava com ele pelo dinheiro, porque ele não tinha "onde cair morto", o que a fazia pensar que aquilo devia ser falta de atenção paterna ou carências infantis. Sentia um asco quase espasmódico quando pensava naquele casal e nunca fizera questão de o esconder. Nojo.

Mas apesar de tudo, Amélia era uma mulher de princípios e que fazia questão de exemplar e estoicamente exercer os valores que tanto tentava incutir aos filhos. E achou que quem ama se deve poder despedir.

Amélia achava justo e fez tudo para que Margarida fizesse parte desta última fase da existência física de Jaime. Conversou com o marido que havia decidido excluí-la sem mais satisfações e fez todos os possíveis por forçar Vasco.

Mas, ao contrário do que toda a agente pensava, Vasco não era nem nunca fora um pau mandado.

Era um rochedo que se pode até pisar, mas que nunca se derruba.

E assim, Margarida foi deixada de parte das cerimónias fúnebres de Jaime e impedida de se despedir condignamente do namorado.

(Jaime e Margarida são outras duas personagens. Uma das "crianças", Carminho, também)

Elvira

Tinha muito mau feitio, Elvira. Sempre tivera.

Enquanto o marido fora vivo, tentara manter a vontade de mandar e a impaciência contidas, mas depois da sua morte, revelara-se a tirana que sempre fora em todo o seu esplendor.

Na sua casa era dona e senhora, imperatriz. e nada que não fosse na medida, forma e momento que ela determinava podiam acontecer.

Elvira sentia especial prazer no exercício do poder, embora não a procurassem para conselhos tanto quanto ela achava que lhe era devido. Então, tratava de dar a sua opinião acerca de tudo o que via, ouvia e presenciava, fosse ou não chamada para o assunto.

À medida que os filhos cresciam e saiam do seu domínio de força, começavam a decidir por eles, a pensar pela sua cabeça, crescia neles a saudade do pai a quem toda a autoridade e sabedoria eram reconhecidas e a aversão pelas opiniões rápidas e rombas da mãe que não reflectia sobre nenhum assunto muito  demoradamente, mas que era inevariavelmente contundente na forma de emitir juizos de valor.

Frequentemente faltava-lhe uma parte fulcral da história e acabava por ser injusta. Mas não saia jamais do seu pedestal nem da sua opinão pré-formada. Mesmo depois de conhecer a história restante.

Os filhos recordariam com mágoa, tareias imerecidas, castigos injustos, invasões de privacidade e espaço despropositadas. E todas estas situações Elvira consideraria normais.

Quando envelheceu foi ficando cada vez mais sozinha, pois insistia em não abandonar o seu orgulho e a sua teimosia, que foram quem mais companhia lhe fez nos últimos anos da sua vida, enquanto tinha conversas baixinho constantemente com o seu marido falecido, a quem fazia queixas de todas as situações que a incomodavam e sobretudo das pessoas que lhe eram mais próximas e que ainda a visitavam.

Dos outros ia perdendo memória.

Convenceu-se que a queriam roubar, que se queriam aproveitar dela. mesmo se eram os outros que lhe traziam alimentos, roupa e outros bens. E começou a desconfiar de todos. Azedou mais do que a solidão por si só tinha conseguido fazer.

Recusava ir para casa de quem quer que fosse pela desconfiança inusitada. Que a queriam envenenar também.

E os outros não tiveram força ou vontade de a contrariar.

Morreu enquanto dormia e a sua casa e todos os seus bens que guardava religiosamente ardiam, num incêndio provocado por uma vela descuidada.


segunda-feira, janeiro 17, 2011

Margarida

Subiu as escadas até ao primeiro andar da casa de Jaime com o jornal do dia e o pão fresco e tocou levemente à campaínha antes de abrir a porta com as suas próprias chaves. 

Entrou directamente para a cozinha e pôs café a fazer, no mimo habitual que concedia a Jaime.

Chamou por ele e, como de costume, não obteve resposta. Jaime dormia pesadamente apenas de manhã, mas não fora habituado a dormir até ao meio dia e considerava uma falta de amor à vida desperdiçar assim os dias, pelo que fazia questão de contrariar sempre o seu ritmo circadiano com a ajuda da namorada.

Margarida, de 35 anos era uma mulher bonita e interessante, escritora de profissão. Escrevia crónicas para revistas e livros, e, apesar de não ter no horizonte ganhar o prémio Nobel, não se saia nada mal na sua profissão.

Gostava de trabalhar perto de Jaime, o amor inesperado e inexplicável que a assolara repentinamente. Conheceram-se na biblioteca, onde o ancião ia buscar livros e ler jornais e revistas e onde Margarida fazia as pesquisas para mais um livro. Conversa puxa conversa e antes que pudesse dar por isso, Margarida estava a jantar com Jaime na sua casa à beira-mar, fascinada pelas suas histórias e tonta do vinho que bebiam, dos charros que fumavam e da companhia que se tornava cada vez mais importante para si.

Da primeira vez que aconteceu fazerem amor, Margarida achou que era uma vez sem exemplo e ficou confusa durante muito tempo. Combateu o que sentia por não achar natural estar apaixonada por um homem com o dobro da sua idade.

Com o passar do tempo optou por colocar o seu bem-estar acima daquilo que os outros poderiam pensar.

Margarida e Jaime eram criaturas de hábitos e circunstâncias muito compatíveis, mas que prezavam muito o seu próprio espaço, ao mesmo tempo.

Apesar de estarem juntos havia já dois anos e dormirem juntos amiúde, mantinham as suas casas e vidas separadas.

Jaime tinha uma vida familiar complicada e Margarida sentia sempre uma grande necessidade de proteger a sua vida dos media que ela mesma utilizava para obter visibilidade para os seus livros.

Uma das coisas que davam especial gozo a Margarida eram os pequenos-almoços com Jaime, em que este, sem as habituais capacidades para a contrariar e contradizer, porque nunca acordava totalmente até umas duas horas depois de ter abertos os olhos do sono, era mais doce e terno. Era nestas alturas em que ele dizia de forma mais desabrida as coisas que a faziam acreditar na relação deles - efémera certamente, mas intensa à sua maneira. Jaime nunca dizia coisas boas "gratuitamente", mas se estivesse ensonado era frequente sair-lhe um "adoro-te" ou um "gosto muito de ti", tão impensado e espontâneo que só podia ser profundamente verdade.

Margarida aprendera a viver com estas pequenas coisas e a adaptar-se de modo a consegui-las ao máximo.

Hoje esmerara-se especialmente. Trazia pão e croissants frescos. Fazia café e aquecia o leite enquanto punha a mesa e o jornal. Como Jaime demorava em se levantar, Margarida fizera ainda sumo de laranja natural e compusera a mesa primorosamente.

Resignada com a ausência de iniciativa de Jaime em sair da cama, Margarida decidiu ir chamá-lo pelo seu pé. Deu-lhe um beijo na nuca, no sítio que ele gostava mais e enfiou-se na cama abraçando-o por trás, com um sorriso traquina de quem sabe que está a fazer uma maldade disfarçada.

Mas Jaime não reagiu.

O horror que Margarida sentiu no momento em que percebeu que o namorado jazia morto na sua cama só se equiparou em magnitude à incapacidade de agir que se lhe seguiu e ao sentimento de insignificância que lhe foi devotado pela restante família de Jaime, o avô Jaime: o filho, nora e netos que sem qualquer respeito  ou consideração pela sua dor e pela sua existência a despiram daquela relação, mantendo-a à parte e na ignorância de todos os preceitos e cerimónias fúnebres do homem que amara intensamente nos últimos dois anos. 

Telma

Quis ser rápida com a entrega do dinheiro na bomba de gasolina e atirou a moeda e a nota que faziam a conta certa do valor em dívida.

E numa fracção de segundos, reparou como os objectos lhe saiam da mão de forma bruta, e sem consideração pela outra pessoa, quase num sinal de desprezo.

E parou.

Ela não conhecia a outra pessoa. Não tinha nada contra o senhor da caixa registadora.

Sentiu aversão pelo seu próprio gesto, pediu desculpa por ter atirado as coisas e deu o seu melhor sorriso.

Foi para ao carro perturbada. Profundamente inquietada por não reconhecer como seu um gesto impensado, questionou-se se estava a tornar numa dessas pessoas frias e frustradas.

Colocou o cinto de segurança e acendeu as luzes. Seguiu devagar para casa, tendo especial cuidado com os outros condutores e peões.

E pelo caminho perguntou-se o que é que se passava consigo que ultimamente se sentia menos ela mesma.

O semáforo ficou vermelho e ela parou, sem o ignorar como de costume. Tinha a mente vazia de pensamentos, mas sentia-se apreensiva e preocupada.

Verde. Seguiu o caminho.

E no momento em que deu o pisca para a sua rua, fez-se luz em si.

Quando alguém era especialmente mauzinho para ela, dizia para si mesma que a pessoa devia estar infeliz no amor, que a vida íntima não lhe devia andar a correr bem. E fez a relação consigo mesma. No espaço de tempo entre descer a sua rua e estacionar o carro, compreendeu que as atitudes que menos gostava em si ultimamente se deviam à forma como a sua relação com Jorge não estava a correr. E pensou em si como pensava nas tais pessoas "mazinhas" e "infelizes", que não eram más em si mesmas, tinham era falta de coragem de procurar o que queriam, de seguir com as suas vidas sem aquele cobertor de segurança, ainda que se tratasse de um cobertor fino e roto.

Puxou o travão de mão e disse-se que se havia coisa que não era, era cobarde.

Desligou o carro e as luzes.

Pausou brevemente antes de tirar o cinto de segurança e sair do carro.

Saiu, bateu com a porta, trancou o carro e decidiu que tinha de acabar a sua relação com Jorge naquele mesmo dia.

Pegou na chave de casa e ao rodá-la na fechadura, sentiu-se feliz por se ter re-encontrado.

sábado, janeiro 15, 2011

H ele na

A aparelhagem do bar cantava "Lose your keys under the house" na voz de Madeleine Peyroux. O ambiente do bar era a cara dele. A mesma cara porque se tinha apaixonado à primeira vista semanas antes, antes do que viria a seguir.

O ambiente era apenas medianamente iluminado, a estética boémia, as cadeiras desconfortáveis e não combinavam. Ele tinha uma aura de escritor parisiense do princípio do século XX, acossado pelos seus próprios demónios pessoais, de maus hábitos incorrigíveis, cheio de ilusões e ao mesmo tempo, paradoxalmente, descrente da humanidade e do mundo.

"Lose your rhythm, lose your lines, lose your sense of passing time", continuava Madeleine, enquanto ele ia buscar os cigarros.

Ela não tinha perdido a fé na Humanidade. Ela era o seu oposto. Tinha bons hábitos, projectos por sonhos, planos por desejos secretos. Estável e permanentemente feliz. Mas não nestas semanas em que os demónios dele tinham invadido um pouco a sua vida tornando-a um carrossel de sentimentos de euforia e depressão, quase paralisante.

"But if you lose me in your mind I must be saved", tinha apreciado a volta no carrossel e estava grata, embora ligeiramente enjoada.

Sabia-se e sentia-se, finalmente, viva. E um pouco tonta.

"Then lose yourself instead till you remember to forget."

Tinha feito um esforço consciente por não o analisar demasiado enquanto o encantamento durou, mas agora que fora quebrado, via-o tal como ele era. E não conseguia deixar de sorrir.

"Lose your senses, lose your mind, lose your faith in human kind," reconhecia nele os bocadinhos de si que tanto amava e reconheceu o universo paralelo de si mesma que ele representava.

"Lose the chance to find another who'd behave, " reconhecia as coisas que nunca tinha tido coragem para fazer na sua vida, e percebeu que não "tinha de" tantas coisas como achava. Percebeu que a vida podia ser diferente. Percebeu que ela mesma poderia ser diferente, sem assim se perder de si própria ou dos outros.

"Lose the vows we never spoke, lose the punch-line to the joke, " compreendia-o agora melhor do que ele próprio poderia supor. Melhor do que ela imaginava que fosse possível, porque finalmente percebeu que ele era ela mesma noutro momento, noutro contexto, noutra vida.

E que ambos nunca haviam estado destinados a encontrar-se ou a fundir-se, porque isso de alguma forma ia contra as leis da natureza.

"Lose your innocence as if willingly you gave-" Guardou-o com carinho na sua essência e deu-lhe um abraço com a alma toda.

Ele não compreendia, tinha demasiado medo para abrir os olhos ou sequer tirar as mãos da barra em frente do seu assento no carrossel que não podia abandonar. Ficara tanto por dizer, nos pressupostos que ele supunha. E ela mesma não sabia se devia dizer-lhe tudo o que queria, porque - afinal de contas - não se devem estragar os filmes alheios.


"Lose the kettle on the pot, you can lose the best you've got
But if you lose me in your heart. I must be saved"

Não lamentava nada do que vivera e finalmente confirmara a sua suspeita de que se não se importasse de fazer más figuras e de deixar transparecer o que era e sentia, se se deixasse invadir pelo que sentia, embora sofresse pelo caminho, não restaria nada de que se arrepender.

Sentir-se-ia em paz, não chorando porque acabou, mas sorrindo porque aconteceu.

E sorria.


Elias

Elias tinha um pénis especialmente pequeno.

Era de resto bem constituído e bonito. Dotado de um físico invejável e de uns olhos verdes a que nenhuma fêmea era capaz de resistir, Elias tinha esse pequeno, pequeníssimo senão.

Estava habituado a ser assediado de forma mais ou menos descarada por mulheres de todas as faixas etárias e géneros. Elias culminava a sua boa aparência com uma cortesia irrepreensível e um charme absurdo. E gostava da "caça", embora tivesse uma sensação ambígua perante a mesma.

Dada a sua condição, desenvolvera ao longo dos anos uma série de estratégias para evitar os olhares de desprezo, risinhos, incredulidades e humilhações a que as mulheres, cruéis, o podiam submeter na intimidade.

Era um amante competente e incansável, fazendo jus ao adágio português, que repetia para si mesmo "enquanto houver língua e dedos, não há medos!". Era fogoso e imaginativo e alternava a penetração que raramente era sentida com toques e beijos e voltas de forma que se notasse o menos possível a sua pequenez. E nunca deixava que o vissem completamente nu.

Embora as suas primeiras experiências sexuais tivessem sido um fiasco humilhante, de há uns anos para cá, Elias gozava de uma reputação brilhante no que tocava ao sexo e era claro para todas as mulheres com quem dormia que não havia qualquer possibilidade de uma relação ou de a experiência se repetir muitas vezes, por isso que "aproveitassem o dia".

Para Elias era impensável que alguma mulher alguma vez o quisesse da maneira que ele era e o simples pensamento de se apaixonar e ser deixado pelo tamanho do pénis, como acontecera no passado, era insuportável. Então, preferia manter o coração frio e as mãos quentes.